Versejando com imagem - Se eu pudersse desamar, de Pero da Ponte
VERSEJANDO COM IMAGEM
SE EU PUDESSE DESAMAR
Se eu podesse desamar
a quen me sempre desamou,
e podess'algún mal buscar
a quen me sempre mal buscou!
Assí me vingaría eu,
se eu podesse coita dar,
a quen me sempre coita deu.
Mais sol non posso eu enganar
meu coraçón que m'enganou,
por quanto me fez desejar
a quen me nunca desejou.
E per esto non dormio eu,
porque non poss'eu coita dar,
a quen me sempre coita deu.
Mais rog'a Deus que desampar
a quen m'assí desamparou,
vel que podess'eu destorvar
a quen me sempre destorvou.
E logo dormiría eu,
se eu podesse coita dar,
a quen me sempre coita deu.
Vel que ousass'eu preguntar
a quen me nunca preguntou,
por que me fez en si cuidar,
pois ela nunca en min cuidou.
E por esto lazeiro eu,
porque non poss'eu coita dar,
a quen me sempre coita deu.
Pero da Ponte
Tradução
Se eu pudesse desamar a quem só me desamou,
e pudesse um mal buscar a quem mal só me buscou!
Assim me vingaria eu,
Se pudesse mágoas dar a quem mágoas só me deu.
Mas só não posso enganar coração que me enganou,
pois que me faz desejar a quem não me desejou.
E por isso não durmo eu,
Pois não posso mágoas dar a quem mágoas só me deu.
Rogo a Deus desamparar a quem me desamparou,
ou que possa eu perturbar a quem só me perturbou.
E logo dormiria eu,
Se pudesse mágoas dar a quem mágoas só me deu.
Talvez ouse perguntar a quem não me perguntou,
Por que ela me a fez cuidar se ela nunca me cuidou.
E por isto padeço eu,
Pois não posso eu mágoas dar a quem mágoas só me deu.
Nota
A cantiga de Pero da Ponte - Se eu pudesse desamar -, desenvolve a temática da coita e da submissão, ainda que indesejada, ao sentimento amoroso, expressa principalmente pela condicional que inicia o refrão bipartido: se eu podesse coita dar, / a quem me sempre coita deu (1ª e 3ª coplas) e porque nom poss’eu coita dar, / a quem me sempre coita deu (2ª e 4ª coplas). A oscilação entre o eu e o ela presente no refrão (eu podesse / (ela) deu; nom poss’eu / (ela) deu) enfatiza a inexorabilidade do destino que faz com que o poeta seja prisioneiro do desejo de provocar na sua senhor, senão o mesmo amor, pelo menos a mesma coita que o atormenta.
É interessante observar que toda a cantiga está construída sobre o artifício do mozdobre: desamar/desamou; buscar/buscou; enganar/enganou; desejar/desejou; desampar/desamparou; destorvar/destorvou; perguntar/perguntou; cuidar/cuidou, compondo um lamento (lazeiro) em que o trovador joga com lugares fixos — o lugar da coita amorosa e o lugar da senhor — desejando ser possível inverter tais papéis, e receber a coita, ao invés de sofrê-la. Entretanto, o rogo a Deus para que desampara a ela, quem m’assi desamparou, encontra na condicional do refrão ‘se eu podesse coita dar’ uma esperança mínima que é rebatida pela conclusão de ‘porque nom poss’eu coita dar, / a quem me sempre coita deu’.
O trovador não é livre para deixar de desamar a quem sempre o desamou, entretanto, de sua coita nasce a cantiga de amor que será cantada nas cortês palacianas, pondo à prova sua mestria e seu bom trovar. Resta-nos perguntar: que amor é esse de que se fala, codificado em fórmulas fixas e topos estereotipados?