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zassu

19
Jul20

Poesia em tempos de desassossego - Homo, Mensura, António Cabral

 

POESIA EM TEMPOS DE DESASSOSSEGO

 

HOMO, MENSURA

m31

Eu não irei convosco, puros habitantes do sonho.

O meu lugar é aqui, entre os homens:

falo a sua linguagem, sinto as suas dores

e tenho a consciência bem agarrada

à carne e ao espírito – os dois poços

em que nasce, desagua e se debate

a impetuosa água do meu pensamento.

 

Que me importam inimagináveis galáxias

e os poemas apenas feitos de palavras?

Reflitam-se as galáxias em nosso espírito

e sejam carne da nossa carne.

Encham-se os poemas do sangue

que nos turva, perturba e inunda as veias.

A única poesia em que acredito é a do homem.

 

António Cabral,

Poemas Durienses

30
Mai20

Poesia em tempos de desassossego - À saída do correio, António Cabral

 

POESIA EM TEMPOS DE DESASSOSSEGO

 

À SAÍDA DO CORREIO

346-620x465

– Donde vem a carta,

senhora Maria?

– Vem da capital

é da Companhia.

 

(A Maria Pêdra

tem um ar de pedra

onde nem deixaram

crescer uma erva).

 

– E que diz a carta,

senhora Maria?

– Que no Douro o sol

nasce ao meio-dia.

 

(A Maria Pêdra

fala como quem

entra numa igreja

e não vê ninguém).

 

– É sobre o seu filho,

senhora Maria?

– Tivesse eu dinheiro

que nada haveria.

 

(A Maria Pêdra

tem no pensamento

um velho estandarte

flutuando ao vento).

 

– Mas que diz a carta,

senhora Maria?

– Pudesse eu falar

contra a Companhia!…

 

(A Maria Pêdra

é como o poeta

que mete os poemas

dentro da gaveta).

 

António Cabral

 

PS - O poema “À saída do correio” foi originalmente publicado em Os homens cantam a Nordeste (1967). Francisco Fanhais musicou-o e inclui-o no álbum Canções da cidade nova (1970), considerado um disco de combate à ditadura de Salazar. Poema e canção vieram mais tarde a ser incluídos na Antologia dos poemas durienses (1999) e no álbum de Fanhais ‘Dedicatória’ (1998).

Durante este período não eram só as palavras dos escritores e/ou dos opositores ao regime que eram violadas e esquartejadas. Mesmo em situações mais quotidianas, como a correspondência de cada português, era notória a interferência da censura já que havia uma primeira leitura que não era a do seu destinatário.

Paula Morais in Portugal sob a égide da ditadura (2005)

25
Mar20

Versejando com imagem - Não é fácil, Senhor, a vida que nos deste, António Cabral

 

VERSEJANDO COM IMAGEM

 

NÃO É FACIL, SENHOR, A VIDA QUE NOS DESTE

 

2018.-Vidago -  Parque do Palace Hotel (48)

Não é fácil, Senhor, a vida que nos deste.

Se há momentos serenos como lagos

inundados de sol,

também há a selva escura,

infindável e escura, de muitas horas

que cansam e fazem doer a alma.

 

Há longas esperanças que, depois

de levarem o melhor dos nossos sonhos,

desabam de repente.

Há o fracasso, o desânimo

e a insegurança de tudo quanto nos vem às mãos.

 

Não é fácil, Senhor, a vida que nos deste.

Luta-se muito, temos de lutar,

todos os dias, por qualquer coisa,

qualquer coisa que acaba por nos fugir,

como se a vida se reduzisse

a um puro jogo das escondidas,

como se nos criasses apenas

para te servirmos de passatempo.

 

Não é fácil, Senhor, a vida que nos deste.

Por isso, muitos corações

se vão assemelhando a pequenos pântanos

onde se desenvolve o limo da melancolia

ou a serpente do desespero.

Por isso as árvores do sonho

mal conseguem dar frutos

e os poucos frutos

deixam nos lábios um sabor a fel…

 

Não é fácil, Senhor, a vida que nos deste.

 

António Cabral, in Poemas Durienses

16
Fev20

Versejando com imagem - A amendoeira do cômoro, António Cabral

 

VERSEJANDO COM IMAGEM

 

A AMENDOEIRA DO CÔMORO

 

2020.- Alfandega da Fé (253)

A amendoeira do cômoro floriu.

Vamos, irmã, vamos ao campo:

Doce é o perfume

que entra, com sol, em nossa casa.

 

A amendoeira do cômoro floriu.

Vamos colher duas pétalas

das mais belas,

                               das mais brancas,

e pô-las no regaço da brisa.

A brisa tem palavras de bondade

e irá ter

                com uns lábios roxos,

uma alma triste,

e levará um pouco de beleza.

 

A amendoeira do cômoro floriu.

Vamos, irmã, vamos ao campo.

Naquele altar de flores

rezaremos a Deus.

 

António Cabral

in Poemas Durienses

 

2020.- Alfandega da Fé (264)

09
Fev20

Versejando com imagem - O Pinhão, António Cabral

 

VERSEJANDO COM IMAGEM

 

O PINHÃO

 

2019.- ADV - I (58)

 

Lá em baixo, na curva do rio,

vazadouro e fornalha, está o Pinhão.

 

Belo!, belo- dirá o turista.

E o burocrata: progressivo.

 

Mas o Pinhão não é nada disso,

é mais do que isso, não é nada

 

do que mostram os documentários de cinema

ou qualquer “Life” comercial.

 

Pinhão!, capital do suor, os teus caminhos

são pedaços de sangue coagulado.

 

António Cabral, In Poemas Durienses

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