Poesia em tempos de desassossego - O caroço do remorso, de Eduardo Guerra Carneiro
POESIA EM TEMPOS DE DESASSOSSEGO
O CAROÇO DO REMORSO
«Ele estava cada vez mais cansado e lá fora as maçãs caíam das árvores»
Peter Handke
(em «A angústia do Guarda-Redes antes do Penalty»)
Voltava-lhe outra vez aquele remorso:
a maçã de Adão não lhe cabia
na camisa. Mais do que o medo era
esse tal remorso: o ter deixado a meio
qualquer coisa que podia ter feito.
Procurava razões e nem bolsos tinha
onde as encontrar; fingia esquecer
e outra vez, anda, o remorso batia
no seu cansado peito. Não falemos
de sentidas dores, mágoas, mesmo
da sentimental lágrima: o sentido
é outro. Assim: remoía o caroço.
Mas estava cada vez mais cansado
e lá fora as maçãs caíam das árvores.
Eduardo Guerra Carneiro,
in Contra a Corrente, Lisboa, & etc., 1988