Desencontro(s) - Cena 8:- Do Novo Narciso ao encontro do «Outro-Eu» - seu semelhante
D0 NOVO NARCISO AO ENCONTRO DO «OUTRO-EU» - SEU SEMELHANTE
No primeiro post deste blog, que surgiu de uma noite de «revolta» e «insónia» - daí a nudez das suas palavras e a «azia» que as mesmas evidencia(va)m - dizia, entre outras coisas, que o mesmo surgia “da minha revolta (...) à procura de sentido para tudo isto” ou, no fundo, que é o mesmo que dizer, da vida, dos tempos e da sociedade em que estamos e vivemos.
Daí as rubricas com a designação «Encontro(s)» e «Desencontro(s)» que outra coisa não são que uma procura, um obter este intento: uma reflexão que comigo mesmo faço - e partilho com os leitores que me leem - feita de encontros e desencontros comigo mesmo e com o mundo que me (nos) rodeia.
Pegando na minha pena - e com as minhas palavras - ou pedindo-as «emprestadas» a diferentes autores/pensadores, todos estes escritos, e os seus diferentes contextos, para além as reflexões neles feitos, espelham «o que me vai na alma». O que efetivamente penso e sinto.
Contudo, tudo aquilo que escrevemos não vem para a página em branco em estado puro, virginal. Pelo meio, vêm atuando muitos filtros e muitas fontes que alimentam aquilo que somos e aquilo que dizemos!
Porque nós somos assim: fruto de muitos caminhos e encruzilhadas. Que ditaram aquilo que somos e, quiçá, definem, muitas vezes de modo radical, aquilo que seremos.
Porque há pessoas que nos marcam. Porque, como seres humanos, temos as nossas preferências. Porque, hoje, mais que nunca, todos queremos, mesmo, ser nós próprios.
Enfim, porque há modelos. Modelos a que nos ligamos e com quem, muitas vezes, partilhamos. Porque temos com eles afinidades. «São dos nossos».
Um autor/pensador, de entre uma plêiade deles com quem mais tenho afinidades intelectuais - e porque não dizê-lo, afetivas (como se a razão nada tivesse a ver com o afeto!) - é Gilles Lipovetsky, no seu modo de ler e interpretar a sociedade em que hoje nos é dado viver.
Por isso, hoje, e aqui, não resisto a longamente citar algumas das passagens do seu livro, prefaciado por Manuel Maria Carrilho, e dado à estampa pelas Edições 70, do Grupo Almedina, em 2013, - «A era do vazio - Ensaios sobre o individualismo contemporâneo».
Procurando dar-nos a conhecer a sociedade em que hoje em dia vivemos e o sujeito que dela emerge, no conjunto dos seus ensaios, num deles, a páginas 86 e seguintes diz-nos:
“Em simultâneo com a revolução informática, as sociedades pós-modernas conhecem uma «revolução interior», um imenso «movimento de consciência» (the awareness movement), um fascínio sem precedentes pelo autoconhecimento e pela autorealização, como prova a proliferação dos organismos psi, técnicas de expressão e comunicação, meditações e ginásticas orientais. A sensibilidade política dos anos 60 deu lugar a uma «sensibilidade terapêutica»; mesmo os mais duros (sobretudo esses) entre os antigos líderes contestatários sucumbem aos encantos da sel-examination: enquanto Rennie Davis abandona o combate radical para seguir o guru Maharaj Ji, Jerry Rubin conta que, entre 1971 e 1975, praticou com delícia a terapia gestaltista, a bioenergia, o rolfing, as massagens, o jogging, tai chi, Esalen, o hipnotismo, a dança moderna, a meditação, Silva Mind Contrai, Arica, a acupunctura e a terapia reichiana. No momento em que o crescimento económico se esgota, o desenvolvimento psíquico reveza-o; o consumo da consciência torna-se uma nova bulimia: ioga, psicanálise, expressão corporal, zen, terapia primal, dinâmica de grupo, meditação transcendental; à inflação económica responde a inflação psi e o formidável surto narcísico que esta engendra. Canalizando as paixões no sentido do Eu, promovido assim à categoria de umbigo do mundo, a terapia psi, ainda que colorida de corporeidade e de filosofia oriental, gera uma figura inédita de Narciso, identificando-se doravante este com o homo psychologicus. Narciso, obcecado por si próprio, não sonha, não está atingido de narcose, trabalha assiduamente na libertação do Eu (...) .
Por outro lado, tudo o que seria suscetível de funcionar como subproduto (o sexo, o sonho, o lapso, etc.,) será reciclado na ordem da subjetividade libidinal e do sentido. Alargando deste modo o espaço da pessoa, incluindo todas as escórias no campo do sujeito, o inconsciente abre caminho a um narcisismo sem limites. Narcisismo total que revela de outro modo os últimos avatares psi, em que a palavra de ordem já não é a interpretação, mas o silêncio do analista: libertado da palavra do Mestre e do referencial de verdade, o analisando é entregue apenas a si próprio numa circularidade regida exclusivamente pela auto-sedução do desejo. (...) Deste modo, a autoconsciência substitui a consciência de classe, a consciência narcísica a consciência política, substituição que não devemos em caso algum explicar reabrindo o eterno debate sobre as manobras de diversão da luta de classes. O essencial está noutro lado”.
Num dos últimos posts deste bolg, na rubrica «Desencontro(s): Cena 7 - E agora?...», citando Wolfgang Streech, dizia: “Ninguém pode – depois daquilo que aconteceu desde 2008 – compreender a política e as instituições políticas sem as pôr numa estreita relação com os mercados e os interesses económicos, assim como as estruturas de classe e os conflitos que dela resultam. Se e em que medida esta posição é «marxista» ou «neomarxista» é uma questão que me parece completamente desinteressante e que não pretendo abordar, pois faz parte do resultado da evolução histórica já não ser possível dizer, atualmente, com segurança, onde, no esforço de esclarecimento dos acontecimentos em curso, acaba o neomarxismo e começa o marxismo. Aliás, as ciências sociais modernas, sobretudo quando se debruçam sobre as sociedades como tal e sobre a evolução das mesmas, não podem prescindir do recurso a elementos centrais das teorias «marxistas» – mesmo que seja para se definirem a si mesmas em contradição com estas. De qualquer modo, estou convencido de que, sem utilizar determinados conceitos cruciais que remontam a Marx, não é possível compreender minimamente a evolução pela qual as sociedades modernas estão a passar atualmente e que isto é tanto mais verdadeiro quanto mais óbvio se torna o papel impulsionador da economia de mercado capitalista em desenvolvimento na sociedade mundial emergente.” (http://zassu.blogs.sapo.pt/desencontros-cena-7-e-agora-7346).
Ou seja, o outro lado está num sistema que tudo reduz a pura e simples «mercadoria». Desde o Eu até à sua própria imagem, tudo se vende. Tudo tem um «valor». Tudo tem um determinado preço. Por isso mesmo se deve «investir»! Na realização do Ego puro!...
Contudo, contradição das contradições, “quanto mais o Eu é investido, feito objeto de atenção e de interpretação, mais a incerteza e a interrogação crescem. O Eu torna-se um espelho vazio.
(...) Narciso já não está imobilizado diante da sua imagem fixa, já nem sequer [agora] há imagem, nada além de uma busca interminável de Si, um processo de desestabilização ou flutuação psi na esteira da flutuação monetária ou da opinião pública: Narciso entrou em órbita”. Veja-se, a este propósito, o «espetáculo degradante» do programa televisivo «A Casa dos Segredos»!
(...) O neonarcisismo não se contentou com neutralizar o universo social, esvaziando as instituições dos seus investimentos emocionais [ditos «nobres»]; também o Eu, desta feita, se vê corroído, esvaziado da sua identidade, o que paradoxalmente sucede em virtude do seu hiper-investimento. Como o espaço público se esvazia emocionalmente por excesso de informações, de solicitações e de animações, o Eu tornou-se um «conjunto frouxo».
(...) No sentido da mesma dissolução do Eu atua a nova ética permissiva e hedonista: o esforço deixou de estar na moda, o que significa coerção ou disciplina austera é desvalorizada em proveito do culto do desejo e da realização imediata”, facilitando, com isso, fenómenos como os da corrupção. E “tudo se passa como se se tratasse de levar ao extremo o diagnóstico de Nietzche sobre a tendência moderna de favorecer a «fraqueza da vontade», ou seja, a anarquia dos impulsos e das tendências e, correlativamente, a perda de um centro de gravidade que hierarquize o todo: «A pluralidade e a desagregação dos impulsos, a falta de sistematização entre eles, leva a uma ‘vontade fraca’.
(...) O fim da vontade coincide com a era da indiferença pura, com o desaparecimento dos grandes fins e grandes iniciativas que merecem o sacrifício da vida: «tudo imediatamente» e já não per aspera astra [de obstáculo em obstáculo até às estrelas]. «Expludam!», lemos por vezes num graffito.
(...) Obcecado apenas por si mesmo, procurando a sua realização pessoal e o seu equilíbrio, Narciso constitui um obstáculo ante os discursos de mobilização de massas; hoje, os apelos à aventura, ao risco político, não encontram eco; se a revolução se desprestigiou, não temos de recriminar qualquer «traição» burocrática: a revolução extinguiu-se sob os spots sedutores da personalização do mundo”. É o império do Eu camuflado numa economia promotora de «astros», em todas as dimensões e setores, para a maximização do lucro de uns poucos pela exploração de muitos (milhões) de outros!
“ (...) A erosão dos pontos de referência do Eu é a réplica exata da dissolução que hoje conhecem as identidades e os papéis sociais, outrora estritamente definidos, integrados como estavam em oposições reguladas: assim, os estatutos da mulher, do homem, da criança, do louco, do civilizado, etc., entraram num período de indefinição, de incerteza, enquanto não pára de se desenvolver a interrogação sobre a natureza das «categorias» sociais (...) Se o movimento democrático dissolve os pontos de referência tradicionais do outro, o esvazia de toda a dissemelhança substancial afirmando uma identidade entre indivíduos, sejam quais forem, sob outros aspetos, as suas diferenças aparentes, o processo de personalização narcísico, pelo seu lado, faz vacilar os pontos de referência do Eu, esvazia-o de todo o conteúdo definitivo”.
Contudo, o Eu, assim, transforma-se num Outro que “esboça o processo narcísico, o nascimento de uma nova alteridade, o fim da familiaridade do Si para consigo, quando quem está diante de mim deixa de ser um absolutamente Outro: a identidade do Eu vacila quando a identidade entre indivíduos se afirma, quando todo e qualquer ser se torna um «semelhante». Deslocamento e reprodução da divisão, ao interiorizar-se o conflito assume sempre uma função de integração social, desta vez menos através da conquista da dignidade pela luta de classe do que da busca da autenticidade e da verdade do desejo”.
É, manifestamente, neste campo que opera (deve operar) a nova revolução social: busca da autenticidade - e não encenações - e da verdade do desejo (de bem estar) em todas as vertentes e dimensões - individuais, sociais, políticas e económicas - sem qualquer disfarce ou mitigação, que uma economia vazia, sem princípios e valores, a não ser os do dinheiro, nos constantemente impingem!
Neste sentido é preciso que as ciências sociais, e o seu corpo teórica, a partir da pesquisa e da investigação, concite o aparecimento de um novo paradigma comprometido com o objeto do seu estudo - que não é um simples objeto/um Outro - mas um Eu/seu «semelhante», inaugurando uma nova ética no modo de fazer (e aplicar) a ciência! De forma crítica e empenhada. Porque, o «pressuposto» da «neutralidade», tem, traz consigo um significado...
E o teatro, bem como todas as formas de arte, e a animação sociocultural, com um vasto campo multi, inter e transdisciplinar, e como metodologia de ação, nestes tempos que correm, tem de dar um salto e «mostrar» que tem um papel fundamental na construção do novo Eu/Sujeito, portador de uma nova cidadania, transformadora da vida de cada um e construtora de uma mova comunidade/polis. Pela assunção do conflito como natural ao viver em comum. Pela luta e combate pelas «novas igualdades».
E que a classe política deve «comungar» dessa nova visão paradigmática, reabilitando-se, sendo capaz de «apregoar uma outra Boa Nova» capaz de mobilizar «outros novos cristãos» na construção de um «Novo Mundo».