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zassu

20
Set25

A intervenção cidadã pela escrita - Sonhar, é preciso!

A INTERVENÇÃO CIDADÃ PELA PALAVRA

António de Souza e Silva

 

APRESENTAÇÃO E ADVERTÊNCIA

 

Os textos, que agora, e a partir deste blog, com que o leitor vai estar confrontado na sua leitura representam a intervenção cidadã muito modesta do autor para quem a palavra sempre foi o seu instrumento privilegiado de comunicação e intervenção.

Desde os seus princípios e valores como homem e cidadão até à sua militância partidária, os textos estão aí para elucidar todo o seu ideário e pensamento, de um homem situado num determinado contexto local e social. Livre, tanto quanto possível, no quer diz; não aceitando qualquer mordaça de pensamento único; não temendo enfrentar qualquer tipo de caciquismo, qualquer tubarão ou, sequer, intimidando-se, com qualquer atitude maledicente, mesmo que semelhante postura lhe tenha custado o seu afastamento no relacionamento com aqueles com quem trabalhou, ao longo dos anos, na construção e desenvolvimento de uma sociedade mais equânime e justa. Afinal de contas, empenhado na construção de uma sociedade outra.

Norteou-o sempre, e ainda norteia, aquela máxima do nosso poeta maior Miguel Torga «Não posso ter outro partido senão o da liberdade».

Os escritos, alguns dos muitos, que agora se apresentam, foram escritos ao longo destes últimos vinte anos nos blogs do autor – Andarilho de andanhos e Voilá é Zassu - (anagrama de Souza e Silva), bem assim em duas rubricas – Discurso sobre a Cidade e Chá de urze com flores de torga – do blog Chaves, do seu amigo, Fernando das Dores Couto Ribeiro. São provenientes de um estudo e reflexão desses mesmos temas, na solidão dos seus dias. E não passam de um humilde contributo de um ser humano, que sempre se preocupou com o Mundo, se interessou pela Humanidade, que procurou, a seu jeito, intervir na Sociedade e na sua Polis. A publicação da presente compilação neste blog, sob a designação da rubrica Intervenção cidadã pela palavra, representa um primeiro momento que antecede a sua publicação em livro.

Como certamente poderão constatar, os textos são datados, referindo-se concretamente às circunstâncias da ocasião em que foram escritos. Todavia, o conteúdo e a(s) mensagem(s) continuam, na minha modesta opinião, e mutatis mutandis, atuais.

Eles aqui ficam, pois, para escrutínio, crítica e reflexão dos(as) nossos(as) caros(as) leitores(as).

***

SONHAR, É PRECISO!...

20221110_145254

I

No último Discurso sobre a Cidade, de 2012, no final do meu artigo, assinado como António Tâmara júnior, reproduzia a minha preocupação sobre a nossa cidade e o seu futuro. E, falando a propósito deste blog CHAVES, dizia: «Preocupa-me que Chaves não tenha pelo menos um blog que reflita, seriamente e sistemáticamente, sobre a sua cidade e do que para ela desejamos. Com efetiva e entusiástica participação dos cidadãos, amantes da sua terra e da sua história. E interessados na construção de um outro futuro. Porque, só assim, creio sinceramente, é que a classe política que temos se poderá vir a regenerar».

Foram exatamente estas as palavras proferidas. E, naquela altura, tal como ainda hoje, continuo a acreditar nelas.

Perdi já a esperança de a classe política se regenerar por dentro. Está tão afastada da realidade – e tão sedenta de poder – que não vê que há mais mundo para além daquele que pisam. Que outro mundo é possível. E que ela nada faz – ou porque não sabe ou por interesses firmemente instalados – para o modificar.

Por isso é necessário que, para além das manifestações, dos protestos e movimentos de contestação cidadã, a palavra dê lugar à ação, que esta tome a dianteira e a primazia em cada cidadão, em concreto. Que a palavra e a ação do cidadão comecem na concreta comunidade onde se inscreve e se insere. Que seja uma efetiva realidade. Porque é necessário tirar as pantufas e o robe e sair do sofá, (que nos prende à televisão e às novas tecnologias de comunicação e informação, amolecendo-nos e anestesiando-nos com entretenimentos que nos infantilizam e notícias e comentários de pseudo peritos, que outras coisas não fazem senão nos baralhar), e calcemos as botas e vistamos o fato-macaco para pôr mãos à obra. Porque há mais vida para além da crise. Porque a crise só se debelará com outra vida, o mesmo que dizer, outra visão, outra postura, outros (s) modelo (s) e, quiçá, outros protagonistas.

II

Sou filho da dita geração do «baby boomers» dos anos 60 e princípios dos anos 70. Adolescentes em final de ciclo e jovens que fizeram mover a sociedade de altura com a sua rebeldia, lutando por causas, inventores da era da «paz e amor». Que lutavam por projetos culturais e ideológicos alternativos, já lançados na década de 50. E, se é certo que se viveu uma primeira fase de inocência e até de lirismo nas manifestações socioculturais, e no âmbito da política, são evidentes o idealismo e o entusiasmo no espírito da luta do povo, contudo, a partir da 2ª parte da época, dá-se já o início de uma grande revolução comportamental, rompendo os modelos conservadores em amplos setores, nomeadamente com o surgimento do feminismo e os movimentos a favor dos negros e dos direitos humanos. É também nesta altura que surgem os movimentos de comportamento como os hippies, com os seus protestos contrários à Guerra Fria e à Guerra no Vietname, a que muitos lhes chamaram de contracultura. Para já não falar da Revolução Cubana, na América Latina.

É, manifestamente, o apogeu dos historicamente designados 30 anos gloriosos, que vão até meados dos anos 70. Que a ninguém deixava indiferente quer na música com os Beatles, os Rolling Stones, The Who, quer com a música de protesto de Bob Dylan, Joan Baez, Peter, Paul and Mary; o aparecimento do rock and rol; de Elvis Presley; de Bob Marley; o Festival de rock Monterrey Pop Festival ou Festival Pop de Monterrey, na California, onde se estreia Jimi Hendrix, Big Brother e Holding Company, com Janis Joplin e Otis Reding; o aparecimento do primeiro álbum dos The Doors - «Light my Fire» e, já no final, em 69, o festival de Woodstock; é o aparecimento da televisão a cores; dos filmes de autores como Jean-Luc Godard, Frederico Fellini, Michelangelo Antonioni, Peter Fonda, Stanley Kubrick; das grandes atrizes e atores como, nomeadamente, Jean Seberg, Anouk Aimée, Anita Ekberg, Brigitte Bardot, Audrey Hepburn, Jane Birkin, Catherine Deneuve, Jane Fonda, Dustin Hoffman, Jack Nickolson, Marcello Mastroianni; são os filmes Blowup, Belle de Jour, Easy Rider, Barbarella, entre muitos outros. São os anos (abril de 61) em que o cosmonauta Yuri Gagarin torna-se o primeiro homem a ir ao espaço e em que o primeiro homem pisa a lua (69), Niel Alden Armstrong. São os anos em que, para mim, adolescente em final de ciclo e da minha primeira juventude, morrem 4 grandes ídolos: Marilyn Monroe (62), cinema; John F. Kennedy (63), política; Martin Luther King (63), líder negro pela defesa dos direitos dos negros e Che Guevara (67), executado na Bolívia.

Os jovens desta geração são influenciados pelas ideias de liberdade «On The Road», livro do Beatnik Jack Kerouac, da chamada geração beat, que começa a opor-se à sociedade de consumo vigente.

Foi, a partir deste caldo e cadinho de movimentos e cultura, essencialmente jovem, que a sociedade saída dos dois conflitos mundiais se estruturou e desenvolveu. E que nos trouxe também até aqui…

III

Entretanto a sociedade em que crescemos e nos desenvolvemos era, na sua grande maioria, uma sociedade jovem.

Hoje, mais de 1/5 da sociedade em que vivemos é constituída por pessoas maduras, ditas da terceira idade, entre as quais me começo a incluir.

Somos, pois, nós a geração do «baby boomers» que constitui uma grande fatia da sociedade que hoje somos. E, neste correr, uma pergunta me assalta: que é feito dos nossos ideias, dos ideais de juventude, dos nossos valores, da nossa luta, da nossa contestação? Como, e porquê, nos deixámos chegar até aqui?

Emprenhámos, fundamentalmente depois da queda do Muro de Berlim, pela sociedade do consumo; tornámo-nos, com a revolução das TIC (tecnologias da informação e comunicação) mais individualistas, narcisos, acomodados. Deixámo-nos embalar num sonho sem valores e completamente hedonista.

Entretanto os corvos, senhores da alta finança e economia mundial, subterrânea e lentamente, foram-nos “fazendo a cama”. E, quando pensávamos que estávamos vivendo um sonho, acordámos de um pesadelo.

E agora, que fazer?

Está bem à vista que não é com os tecnocratas e com os políticos que enxameiam todas as instituições que criámos ao longo destas décadas que sairemos desta crise. A chave está nas nossas mãos. Aliás, sempre esteve!

E, a este propósito, duas figuras/personalidades do final da minha adolescência e primeira juventude, estão cada vez, no meu espírito, mais vivas. Uma, Luther King, pela luta pela igualdade e dos direitos dos negros norte-americanos. Com ele, e como ele, «devemos ter sonhos». Porque sem sonho não há vida humana que se preze. Nem que, por esse sonho, tal como ele, se tenha de dar a vida! A outra figura é John F. Kennedy, não tanto pelo seu exemplo de vida, mas sim pelo seu simples e fundamental pensamento político quando, em campanha eleitoral para Presidente dos Estados Unidos, dizia aos seus concidadãos: «não pergunte o que o seu país pode fazer por você, pergunte o que você pode fazer pelo seu país».

Um exemplo de vida e uma lição política que andaram, e ainda andam, tão arredados do nosso pensamento e da nossa ação, durante décadas, perante nós como cidadãos.

Porque, se é certo que a política e os políticos são imprescindíveis nas nossas sociedades democráticas, não menos certo é que, sem uma verdadeira cidadania, com cidadãos verdadeiramente atuantes e participativos (que não só nos momentos eleitorais), não há política digna desse nome.

Confiámos demasiado, e durante muito tempo, num estado provedor do Bem-estar social, deixando-o “engordar” demasiado e ser palco de demasiados protagonistas/oportunistas que dele se serviram (e, infelizmente, ainda servem), enquanto nos acantonávamos numa atitude passiva, reivindicadora apenas de direitos e sem quaisquer preocupações de carácter solidário e cívico, que completassem e suprissem as falhas que um estado que se quis todo omnipresente e omnipotente sempre apresenta e não pode suprir. Os resultados estão bem à vista!

Por isso, há que mudar de rumo. Há que voltar a sonhar que uma outra sociedade é possível. Enquadrando, nos seus devidos termos, o papel que cabe ao estado, às instituições da sociedade civil e aos cidadãos. Num diálogo que se deve fazer com carácter de urgência, mas, simultaneamente, com a necessária e profunda reflexão que o tema e a situação exigem.

IV

E quem fala do papel do estado – ou da sua redefinição – o mesmo se passa com o das autarquias locais.

Não vale a pena voltar a falar da vergonhosa pseudorreforma das autarquias que se quedou, simplesmente, na extinção de algumas freguesias. A este tema, já noutro local - http://zassu.blogs.sapo.pt/2655.html - teci algumas considerações.

Queria agora falar das eleições autárquicas que, a passos largos, se nos avizinham. E gostaria de, a este respeito, formular um conjunto de questões, divididas em quatro temas:

  • Que cidade de Chaves queremos para o futuro, ou seja, com que cidade sonhamos para vivermos e, no futuro, para os nossos filhos? Alguém nos apresentou alguma visão na qual acreditemos e que seja capaz de nos galvanizar e que seja suscetível de nos mobilizar, como flavienses, na sua prossecução? Qual é o discurso reinante dos partidos do arco do poder municipal em Chaves? Promessas? Obras? Empregos? Mas que promessas? Obras para quê e com que dinheiro? E empregos: para quê, com que finalidade, e para quem?

 

  • Falando do mundo rural, parte integrante e essencial da própria natureza flaviense e da sua urbe. Tem sido a nossa ação perante esta parte significativa do nosso território eficaz, no sentido da construção de um mundo rural com efetivo significado para as gentes que nele habitam? Temos a preocupação pela preservação da identidade e da memória de um mundo que foi a razão de ser (e porventura ainda continua a ser) a grandeza da nossa cidade? Que relação intergeracional estabelecemos com as suas gentes? Temos promovido a cidadania ativa e participativa ou, pelo contrário, temos para com estas pessoas uma solidariedade benevolente e pouco promotora da participação da sua população idosa na construção de uma outra comunidade com nítidos proveitos também na construção de uma sociedade flaviense mais dinâmica, quer sob o ponto de vista cultural quer social?

 

  • Que papel efetivo têm, na construção da cidadania e desenvolvimento flaviense, as suas instituições de carácter cultural, recreativo, social, assistencial e económico no concelho? Primam por uma dinâmica própria, autónoma, e as suas ações e atividades refletem o espírito de partilha e de construção de uma sociedade que se quer verdadeiramente livre, democrática e desenvolvida? Ou, pelo contrário, na sua maioria, as suas ações e atividades outra coisa não são mais, ou representam, senão o braço estendido de um poder tentacular assente nos senhores detentores do poder autárquico e, como tal, dependentes política e financeiramente dele?

 

  • Qual é o perfil dos candidatos que estão prestes a se apresentarem a liderar o nosso concelho? São pessoas idóneas, honestas, honradas, competentes e capazes de pôr a sua terra acima dos interesses do seu partido ou dos seus próprios interesses? São pessoas autossuficientes que acreditam, pela sua ação e influência? São seres capazes de, só por si sós, desenvolver e mudar o município? Ou, pelo contrário, são pessoas simples e humildes que acreditam só ser possível a mudança e o desenvolvimento se todos nela participarmos como munícipes/atores e, não passando eles (ou elas), e a sua ação, de uma singela, embora importante, intermediação na construção de uma cidade e de um território municipal feito mesmo por todos?

Eis aqui, pois, um conjunto de questões que, reputo, serem essenciais em termos da dinâmica eleitoral autárquica que se avizinha. Porque estas são as questões que, na minha opinião, são as que importam e são essenciais na hora de escolher um programa (que deve ter necessariamente uma visão e um horizonte credível do que queremos e que, por isso mesmo, desejamos partilhar). Com uma equipa e um (a) líder.

Será nesta linha pela qual se pautará a minha escolha e, consequente, a minha opção…

E acredito – porque ainda não me esqueci daquilo que foram os feitos da geração que me acompanhou no final da minha adolescência e primeira juventude e que me fizeram homem para a vida – que, no palco da cidadania, seja possível corporizar-se uma nova visão, com novos princípios e novos valores que levem a pôr em prática uma nova metodologia de abordagem e de participação democrática na construção de uma sociedade flaviense moderna, mais desenvolvida, justa e equitativa, no contexto e conserto do território nacional, fazendo jus à sua longa e gloriosa história milenar.

Aprendi, ao longo da vida, que ninguém desenvolve ninguém a não ser nós próprios. Por isso, hoje – ainda mais que nunca – SONHAR, É PRECISO!...

***

Nota – * Este artigo «Sonhar, é preciso!»  saiu no blog CHAVES, na rubrica Discursos sobre a cidade, a 19 de abril de 2013;

             * Já lá vão 13 anos! Contudo, parece-nos, o seu conteúdo continua atual; melhor dito, redobradamente atual.

 

António de Souza e Silva

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16
Set25

Viver ... a diferentes caminhares

CRÓNICA IV 

VIVER… A DIFERENTES CAMINHARES 

 

SENSAÇÃO


Pelas tardes azuis do verão,

Irei pelas sendas,

Guarnecidas pelo trigal,

Pisando a erva miúda.

Sonhador,

Sentirei a frecura

A meus pés;

Deixarei o vento banhar

Minha cabeça nua.

Não falarei mais.

Mas um amor infinito

Me invadirá a alma.

E irei longe, bem longe,

Como um boémio,

Pela natureza,

- Feliz como com uma mulher.

Arthur Rimbaud

 

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(Cortesia de Pablo Serrano)

Na nave central daquela igreja, Nona teve a sensação que se tinha deslocado ali como se fora uma estrela cadente. Um meteoro.

Ali estavam familiares do defunto (já muito poucos) e seus amigos (também já escassos, pois a idade não perdoa), numa missa de corpo presente.  Simplesmente…

Mas nada do que ali se passava tinha a ver consigo.

Nona não sabia muito bem o que ali estava a fazer. Há muito que tinha deixado de acreditar em certas coisas.  Seria um gesto de solidariedade? Homenagem? Mas, para quem, se seu amigo já não podia ver e sentir? Seu amigo tinha partido.

Com certeza que não era só pelo seu amigo que, dele, nada mais havia, a não ser «os restos» do homem que tinha sido. Sua vida, como a de todos nós, foi uma simples passagem por este planeta. Uma simples passagem, sim. Um caminhar. O seu caminhar. Tão somente. Ali, apenas, recordava os momentos de vida vividos com ele. Solitários e solidários.

E pensou que, afinal, estava ali por ele mesmo. No crepúsculo do amigo, sentiu o seu.

E tal, como J.J. Rousseau, ao chegar aos seus sessenta anos, pensava que não passava de um proscrito: perseguido e mal-amado. Da vida. Pela vida. Muitas vezes madastra.

Mas nada disso o deprimia. Ele assim tinha determinado que assim fosse. Assim se tinha conformado. 

Há muito que virara a página das suas ambições sociais, das amizades cintilantes, equívocas, das modas e dos mexericos.

Optou por uma caminhada diferente, mais solitária. Feita de muitas outras caminhadas, percorrendo outros trilhos. Procurando outras sensações. Sozinho. Afastado do bulício.

E que descanso não ter de verificar todos os dias a sua quota de aceitação social; o calcular quais sejam os seus amigos; o avaliar os seus inimigos; o deixar de avaliar os seus pretensos protetores; o deixar de se medir em importância aos olhos dos outros que, na sua maioria, não passa(va)m de imbecis e vaidosos!

Sim, há muito tempo que Nona tinha deixado de estar aí.

Olhava para a frente e para o lado e só tinha a sensação que estava ali sozinho: todas as suas máscaras, e quiçá a dos outros, tinham derretido ao sol dos caminhos percorridos por cada um. Sim, as dele e as dos restantes.

E, tal como o seu J.J. Rousseau, uma vez mais, nas palavras de Fréderric Gros, na sua obra Caminhar, uma filosofia, constatou que tinha agora nascido em si um ser totalmente «transparente, um lago de compaixão».

As suas longas horas de caminhadas secaram todas as invejas e rancores, tal como fazemos com os lutos ou as grandes mágoas. Mas tal não significava que se lançasse nos braços daqueles seus «amigos» ou «inimigos», que o rodea(va)m. A sua nova vida de andarilho contumaz, por muitas e variadas veredas, trouxeram-lhe um novo estado de alma: não sentia nada em particular pelo «outro» ao seu lado e à sua frente, nem agressividade mesquinha, nem fraternidade comunicativa; apenas, e tão só, «uma disponibilidade benevolente ante a infelicidade».

Quando seus ódios se acalmavam e suas obsessões se extinguiram, por lassidão, chegavam as suas caminhadas; quando já nada resta(va) para fazer ou crer e apenas lembrar, surgiam as suas caminhadas. Caminhar fê-lo reencontrar-se na simplicidade da sua presença; para além de qualquer esperança; para além de qualquer expetativa. Andar não buscando um «eu autêntico, uma identidade perdida», pelo contrário, escapar da própria ideia de identidade; fugir da tentação de ser alguém. Melhor ainda, dar a si mesmo a possibilidade de reinventar-se sempre, na peugada de Henry David Thoreau.

As memórias assumem, no decorrer das suas caminhadas, um aspeto fraternal: são as suas velhas irmãs gastas.

Nona, caminhante solitário, decidiu procurar, sob a crosta da cultura, a verdade nativa das paixões humanas. Em solidão!

Nos tempos de hoje, com o pensamento de J.J. Rousseau, de então, a convocá-lo, a nos convocar, para uma profunda reflexão sobre o homem dito civilizado, saturado de cortesias e hipocrisias, de malvadezes e invejas, que o transformam numa verdadeira besta. A um mundo social com todas as suas injustiças e vivências, suas desigualdades e misérias. Bem assim os Estados, com as suas polícias e exércitos, tal qual selvas. A que tudo submetem.

Hoje, mais que nunca, o Homem, o ser social moderno, é um ser repleto de rancores, raiva, inveja e ressentimento.

Só o caminhar dá a Nona a sensação de ser o senhor das suas imagens e dos seus sonhos. Que traz consigo a doçura do desapego. Porque se limita, simplesmente, a existir.

Até que um dia nos vamos. Simplesmente partimos. Como o seu amigo.

 

António de Souza e Silva

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