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30
Abr21

Versejando com imagem - O dilúvio, de Eugénio de Castro

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O DILÚVIO

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Há muitos dias já, há já bem longas noites

que o estalar dos vulcões e o atroar das torrentes

ribombam com furor, quais rábidos açoites,

ao crebro rutilar dos coriscos ardentes.

 

Pradarias, vergéis, hortos, vinhedos, matos,

tudo desapareceu ao rude desabar

das constantes, hostis, raivosas cataratas,

que fizeram da Terra um grande e torvo mar.

 

À flor do torvo mar, verde como as gangrenas,

onde homens e leões boiam agonizantes,

imprecando com fúria e angústia, erguem-se apenas,

quais monstros colossais, as montanhas gigantes.

 

É aí que, ululando, os homens como as feras

refugiar-se vão em trágicos cardumes,

O mar sobe, o mar cresce. e os homens e as panteras,

crianças e reptis caminham para os cumes.

 

Os fortes, sem haver piedade que os sujeite,

arremessam ao chão pobres velhos cansados.

e as mães largam. cruéis, os filhinhos de leite,

que os que seguem depois pisam, alucinados.

 

Um sinistro pavor; crescente e sufocante,

desnorteia, asfixia a turba pertinaz:

ouvem-se urros de dor, e os que vão adiante

lançam pedras brutais aos que ficam pra trás.

 

Raivoso, o touro estripa os míseros humanos

que o estorvam, ao correr em fuga desnorteada,

e pelo ar tenebroso as águias e os milhanos

fogem, com vivo horror, daquela estropeada.

 

Cresce a treva infernal nos cavos horizontes;

o oceano sobe e muge em raivas cavernosas,

e as ondas, a trepar pelos visos dos montes,

fazem de cada vez cem vítimas chorosas!

 

Os negros vagalhões, nos bosques mais cimeiros.

silvam e marram já, em golpes iracundos;

resplendem raios mil em rútilos chuveiros,

e os corvos, a grasnar, desolham moribundos.

 

Blasfémias, maldições elevam-se à porfia;

fustigado pelo raio, aumenta o furacão;

cada ruga do mar acusa uma agonia,

cada bolha, ao estalar, solta uma imprecação.

 

Cresce no mar, sobe o mar... e traga, rudemente.

da mais alta montanha o píncaro nevado.

e um tremendo trovão aplaude a vaga arlente,

que envolve, ao despenhar-se, o último condenado.

 

Cresce o mar, sobe o mar, que já topeta os céus:

e, levada pelo fero e desabrido norte,

sua espuma, a ferver, molha o rosto de Deus,

que lhe encontra um sabor nauseabundo de morte...

 

Cresce o mar, sobe o mar... Cada vaga é uma torre!

No céu, o próprio Deus melancólico pasma...

E, pelos vagalhões acastelados, corre

a Arca de Noé, qual navio-fantasma...

 

Eugénio de Castro,

in 'Saudades do Céu'

26
Abr21

Versejando com imagem - Em busca, de José Duro

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EM BUSCA

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Ponho os olhos em mim, como se olhasse um estranho,

E choro de me ver tão outro, tão mudado...

Sem desvendar a causa, o íntimo cuidado

Que sofro do meu mal — o mal de que provenho.

 

Já não sou aquele Eu do tempo que é passado,

Pastor das ilusões perdi o meu rebanho,

Não sei do meu amor, saúde não na tenho,

E a vida sem saúde é um sofrer dobrado.

 

A minh’alma rasgou-ma o trágico Desgosto

Nas silvas do abandono, à hora do sol-posto,

Quando o azul começa a diluir-se em astros…

 

E à beira do caminho, até lá muito longe,

Como um mendigo só, como um sombrio monge,

Anda o meu coração em busca dos seus rastros...

 

José Duro,

 in 'Antologia Poética'

24
Abr21

Versejando com imagem - Poeta, de Teixeira de Pascoaes

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POETA

2011 - Caminhada entre Oliveira e Cidadelhe 020

Quando a primeira lágrima aflorou

Nos meus olhos, divina claridade

A minha pátria aldeia alumiou

Duma luz triste, que era já saudade.

 

 

Humildes, pobres cousas, como eu sou

Dor acesa na vossa escuridade...

Sou, em futuro, o tempo que passou;

Em mim, o antigo tempo é nova idade.

 

 

Sou fraga da montanha, névoa astral,

Quimérica figura matinal,

Imagem de alma em terra modelada.

 

 

Sou o homem de si mesmo fugitivo;

Fantasma a delirar, mistério vivo,

A loucura de Deus, o sonho e o nada.

 

Teixeira de Pascoaes

Sempre (1898)

In Poesia de Teixeira de Pascoaes

Org. de Silvina Rodrigues Lopes

Lisboa, Editorial Comunicação, 1987

22
Abr21

Versejando com imagem - Fala do sol, de Teixeira de Pascoaes

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POEMA DE TEIXEIRA DE PASCOAES PARA OS JOVENS POETAS GALEGOS

 

O primeiro número da revista Nós, publicado em Ourense em 30 de outubro de 1920, na sua página 3, inicia-se com um poema de Teixeira de Pascoaes, intitulado “Fala do Sol”, dedicado aos jovens poetas galegos, que a seguir reproduzimos:

 

 FALA DO SOL

Virá o verde novinho em folhas... - Árvores desfolhadas e tron

 

Num lar azul sem fim

sou velho tronco a arder.

Há florestas de mãos voltadas para mim,

velhinhas, a tremer…

Os cegos andrajosos

gritam por mim nas trevas. Querem luz!

Gritam por mim as árvores desfolhadas,

os roxos corpos nus,

as fontes congeladas

e os ventos invernosos…

Gritam por mim, à noite, a voz dos mundos

e os poetas moribundos…

 

As lágrimas da chuva,

as lágrimas do órfão e da viúva,

as lágrimas dos trágicos vencidos,

as lágrimas dos mortos esquecidos,

pelas noites de outono, errando ao luar,

vendo-me, em alvas nuvens se evaporam;

Nuvens que eu bebo, a rir, pelos que choram,

erguendo a Deus meu cálix de amargura,

meu cálix de oiro aceso, a trasbordar,

cheio de toda a humana desventura…

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20
Abr21

Versejando com imagem - Dedicatória à Galiza, de Teixeira de Pascoaes

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DEDICATÓRIA À GALIZA

Rosalía_Castro_de_Murguía_por_Luis_Sellier 

Galiza, terra irmá de Portugal

que o mesmo Oceano abraça longamente;

berço de brancas nevoas refulgindo

o espírito do sol amanhecente;

altar de Rosália e de Pondal

iluminado a lágrimas acêzas,

entre pinhaes, aos zéfiros, carpindo

maguas da terra e místicas tristezas;

a ti dedico o livro que uma vez,

embriagado de sombra e solidão,

compuz sobre os fraguedos do Marão:

este livro de saudoso e montanhez.

 

Teixeira de Pascoaes (*)

 

(*) Este poema dedicado por Teixeira à Nossa Terra aparece na 2ª edição da sua obra Marános, publicada no Porto em 1920, e na 3ª edição do ano 1930, em Lisboa. Com ele abre o seu livro. Em julho de 1923 publica-o com pequenas variantes na revista Nós.

18
Abr21

Versejando com imagem - Relíquia, de António Patrício

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RELÍQUIA

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Era de minha mãe: é um pobre xale
que tem pra mim uma carícia de asa.
Vou-lhe pedir ainda que me fale
da que ele agasalhou em nossa casa.

Na sua trama já puída e lassa
deixo os meus dedos pra senti-la ainda;
e Ela vem, é Ela que me abraça,
fala de coisas que a saudade alinda.

É a minha mãe mais perto, mais pertinho,
que eu sinto quando toco o velho xale,
que guarda um não sei quê do seu carinho.

E quando a vida mais me dói, no escuro,
sinto ao tocá-lo como alguém que embale
e beije a minha sede de amor puro.

António Patrício, in 'Antologia Poética'

16
Abr21

Versejando com imagem - Dona Inês de Castro, de Afonso Lopes Vieira

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DONA INÊS DE CASTRO

Inês de Castro

Choram ainda a tua morte escura

Aquelas que chorando a memoraram;

As lágrimas choradas não secaram

Nos saudosos campos da ternura.

 

Santa entre as Santas pela má ventura,

Rainha, mais que todas que reinaram,

Amada, os teus amores não passaram

E és sempre bela e viva e loira e pura.

 

Ó linda, sonha aí, posta em sossego

No teu momento de alva pedra tina,

Como outrora na Fonte do Mondego.

 

Dorme, sombra de graças e de saudade,

Colo de Graças, amor, moça menina,

Bem-amada por toda a eternidade!

 

Afonso Lopes Vieira

12
Abr21

Versejando com imagem - Da minha aldeia, de Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)

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DA MINHAS ALDEIA

2008 - Percurso Memória da Infância 343

Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo...

Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer

Porque eu sou do tamanho do que vejo

E não do tamanho da minha altura...

 

Nas cidades a vida é mais pequena

Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.

Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,

Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe

de todo o céu,

Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos

nos podem dar,

E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.

 

Alberto Caeiro

Heterónimo de Fernando Pessoa

   

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