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zassu

21
Jul20

Poesia em tempos de desassossego - Elegia, Alberto Pimenta

 

 

POESIA EM TEMPOS DE DESASSOSSEGO

 

ELEGIA

2009 - Caminhada Barca d'Alba-La Fregeneda 033

já nada é o que era

e provavelmente nunca mais o será

e mesmo que o fosse

algo me diz que já não seria o que era

porque o que era

era o que era por ser o que era

do que eu me lembro muito bem

embora eu então não fosse o que agora sou

mas o que agora sou

ou estou a ser

é deixar de ser o que sou

porque eu sou deixando de ser

deixar de ser é a minha maneira de ser

sou a cada instante

o que já não sou

e o mesmo se deve passar com tudo o que é

motivo por que não admira que assim seja

quer dizer

que nada seja o que era

e se assim é

ou já não é

seja ou não seja

 

Alberto Pimenta, in 'Ascensão de Dez Gostos à Boca'

19
Jul20

Poesia em tempos de desassossego - Homo, Mensura, António Cabral

 

POESIA EM TEMPOS DE DESASSOSSEGO

 

HOMO, MENSURA

m31

Eu não irei convosco, puros habitantes do sonho.

O meu lugar é aqui, entre os homens:

falo a sua linguagem, sinto as suas dores

e tenho a consciência bem agarrada

à carne e ao espírito – os dois poços

em que nasce, desagua e se debate

a impetuosa água do meu pensamento.

 

Que me importam inimagináveis galáxias

e os poemas apenas feitos de palavras?

Reflitam-se as galáxias em nosso espírito

e sejam carne da nossa carne.

Encham-se os poemas do sangue

que nos turva, perturba e inunda as veias.

A única poesia em que acredito é a do homem.

 

António Cabral,

Poemas Durienses

17
Jul20

Poesia em tempos de desassossego - Começo, Rui Pires Cabral

 

POESIA EM TEMPOS DE DESASSOSSEGO

 

COMEÇO

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Vejo-te um pouco como se já não houvesse

uma casa para nós. As grandes perguntas estão aí

por todo o lado, onde quer que se respire, dentro

dos próprios frutos. É o começo da noite

e os cinzeiros já estão cheios de meias palavras:

porque escolhemos tão pouco

aquilo que nos pertence?

Vejo-te de olhos fechados enquanto me confiavas

a tua história – à mesa da cozinha, quase um espelho,

quase uma razão.  As minhas canções preferidas

pareciam convergir para ti a certa altura, dir-se-ia

que te vestias com elas. E no entanto

como se apressaram as grandes florestas a invadir

 

as gavetas, como misturaram as raízes

no eco que fazia o teu desejo contra mim.

 

Rui Pires Cabral

A Super-Realidade, 2011

15
Jul20

Poesia em tempos de desassossego - O caroço do remorso, de Eduardo Guerra Carneiro

 

POESIA EM TEMPOS DE DESASSOSSEGO

 

O CAROÇO DO REMORSO

 

«Ele estava cada vez mais cansado e lá fora as maçãs caíam das árvores»

Peter Handke

(em «A angústia do Guarda-Redes antes do Penalty»)

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Voltava-lhe outra vez aquele remorso:
a maçã de Adão não lhe cabia
na camisa. Mais do que o medo era
esse tal remorso: o ter deixado a meio
qualquer coisa que podia ter feito.
Procurava razões e nem bolsos tinha
onde as encontrar; fingia esquecer
e outra vez, anda, o remorso batia
no seu cansado peito. Não falemos
de sentidas dores, mágoas, mesmo
da sentimental lágrima: o sentido
é outro. Assim: remoía o caroço.
Mas estava cada vez mais cansado
e lá fora as maçãs caíam das árvores.


Eduardo Guerra Carneiro, 

in Contra a Corrente, Lisboa, & etc., 1988

10
Jul20

Poesia em tempos de desassossego - Aos amigos, Herberto Hélder

 

POESIA EM TEMPOS DE DESASSOSSEGO

 

AOS AMIGOS

amigos11

Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.

Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,

com os livros atrás a arder para toda a eternidade.

Não os chamo, e eles voltam-se profundamente

dentro do fogo.

-Temos um talento doloroso e obscuro.

construímos um lugar de silêncio.

De paixão.

 

Herberto Hélder

08
Jul20

Poesia em tempos de desassossego - Tristeza, Teixeira de Pascoaes

 

POESIA EM TEMPOS DE DESASSOSSEGO

 

TRISTEZA

2020.- PR7 CHV - Trilho de Seara Velha-Castelões (259)

O sol do outono, as folhas a cair,

A minha voz baixinho soluçando,

Os meus olhos, em lagrimas, beijando

A terra, e o meu espirito a sorrir...

 

Eis como a minha vida vai passando

Em frente ao seu Phantasma... E fico a ouvir

Silêncios da minh'alma e o ressurgir

De mortos que me foram sepultando...

 

E fico mudo, extático, parado

E quási sem sentidos, mergulhando

Na minha viva e funda intimidade...

 

Só a longínqua estrela em mim atua...

Sou rocha harmoniosa á luz da lua,

Petrificada esfinge de saudade...

 

Teixeira de Pascoaes, in 'Elegias'

06
Jul20

Poesia em tempos de desassossego - O Vos Omnes, Miguel Torga

 

POESIA EM TEMPOS DE DESASSOSSEGO

 

O VOS OMNES

 

M.84.20

(Mattia Preti - Veronica com o véu)

 

Ainda que eu cantasse como os outros,

Uma nota saía discordante.

E não é do arranjo da garganta:

Mas por motivos tais e tão ocultos

Que mesmo minha Mãe os desconhece.

Por isso, não digam mal...

Foi, realmente, incómodo que eu viesse.

Mas agora é deixar-me e respeitar-me

Como se faz às pedras das montanhas.

Que o penitente conserve

O seu rosto verdadeiro

No doloroso caminho

Do  Calvário

Para que possa a Verónica

Com a toalha de linho

Tirar-lhe o santo sudário...

 

Miguel Torga

O outro livro de Job, 1936

04
Jul20

Poesia em tempos de desassossego - Fiel, Guerra Junqueiro

 

POESIA EM TEMPOS DE DESASSOSSEGO

 

FIEL

 

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Na luz do seu olhar tão lânguido, tão doce,
Havia o que quer que fosse
D'um íntimo desgosto:
Era um cão ordinário, um pobre cão vadio
Que não tinha coleira e não pagava imposto.
Acostumado ao vento e acostumado ao frio,
Percorria de noite os bairros da miséria
À busca dum jantar.
E ao ver surgir da lua a palidez etérea,
O velho cão uivava uma canção funérea,
Triste como a tristeza oceânica do mar.
Quando a chuva era grande e o frio inclemente,
Ele ia-se abrigar às vezes nos portais;
E mandando-o partir, partia humildemente,
Com a resignação nos olhos virginais.
Era tranquilo e bom como as pombinhas mansas;
Nunca ladrou dum pobre à capa esfarrapada:
E, como não mordia as tímidas crianças,
As crianças então corriam-no a pedrada.

Uma vez casualmente, um mísero pintor
Um boêmio, um sonhador,
Encontrara na rua o solitário cão;
O artista era uma alma heroica e desgraçada,
Vivendo numa escura e pobre água furtada,
Onde sobrava o gênio e onde faltava o pão.
Era desses que têm o rubro amor da glória,
O grande amor fatal,
Que umas vezes conduz às pompas da vitória,
E que outras vezes leva ao quarto do hospital.

E ao ver por sobre o lodo o magro cão plebeu,
Disse-lhe: - "O teu destino é quase igual ao meu:
Eu sou como tu és, um proletário roto,
Sem família, sem mãe, sem casa, sem abrigo;
E quem sabe se em ti, ó velho cão de esgoto,
Eu não irei achar o meu primeiro amigo!..."

No céu azul brilhava a lua etérea e calma;
E do rafeiro vil no misterioso olhar
Via-se o desespero e ânsia d'uma alma,
Que está encarcerada, e sem poder falar.
O artista soube ler naquele olhar em brasa
A eloquente mudez dum grande coração;
E disse-lhe: - "Fiel, partamos para casa:
Tu és o meu amigo, e eu sou o teu irmão.-"

E viveram depois assim por longos anos,
Companheiros leais, heroicos puritanos,
Dividindo igualmente as privações e as dores.
Quando o artista infeliz, exausto e miserável,
Sentia esmorecer o génio inquebrantável
Dos fortes lutadores;
Quando até lhe acudia às vezes a lembrança
Partir com uma bala a derradeira esp'rança,
Pôr um ponto final no seu destino atroz;
Nesse instante do cão os olhos bons, serenos,
Murmuravam-lhe: - Eu sofro, e a gente sofre menos,
Quando se vê sofrer também alguém por nós.

Mas um dia a Fortuna, a deusa milionária,
Entrou-lhe pelo quarto, e disse alegremente:
"Um génio como tu, vivendo como um pária,
Agrilhoado da fome à lúgubre corrente!
Eu devia fazer-te há muito esta surpresa,
Eu devia ter vindo aqui p'ra te buscar;
Mas moravas tão alto! E digo-o com franqueza
Custava-me subir até ao sexto andar.
Acompanha-me; a glória há de ajoelhar-te aos pés!..."
E foi; e ao outro dia as bocas das Frinés
Abriram para ele um riso encantador;
A glória deslumbrante iluminou-lhe a vida
Como bela alvorada esplêndida, nascida
A toques de clarim e a rufos de tambor!

Era feliz. O cão
Dormia na alcatifa à borda do seu leito,
E logo de manhã vinha beijar-lhe a mão,
Ganindo com um ar alegre e satisfeito.
Mas ai! O dono ingrato, o ingrato companheiro,
Mergulhado em paixões, em gozos, em delícias,
Já pouco tolerava as festivas carícias
Do seu leal rafeiro.

Passou-se mais um tempo; o cão, o desgraçado,
Já velho e no abandono,
Muitas vezes se viu batido e castigado
Pela simples razão de acompanhar seu dono.
Como andava nojento e lhe caíra o pelo,
Por fim o dono até sentia nojo ao vê-lo,
E mandava fechar-lhe a porta do salão.
Meteram-no depois num frio quarto escuro,
E davam-lhe a jantar um osso branco e duro,
Cuja carne servira aos dentes d'outro cão.

E ele era como um roto, ignóbil assassino,
Condenado à enxovia, aos ferros, às galés:
Se se punha a ganir, chorando o seu destino,
Os criados brutais davam-lhe pontapés.
Corroera-lhe o corpo a negra lepra infame.
Quando exibia ao sol as podridões obscenas,
Poisava-lhe no dorso o causticante enxame
Das moscas das gangrenas.

Até que um dia, enfim, sentindo-se morrer,
Disse "Não morrerei ainda sem o ver;
A seus pés quero dar meu último gemido..."
Meteu-se-lhe no quarto, assim como um bandido.
E o artista ao entrar viu o rafeiro imundo,
E bradou com violência:
"Ainda por aqui o sórdido animal!
É preciso acabar com tanta impertinência,
Que esta besta está podre, e vai cheirando mal!"
E, pousando-lhe a mão cariciosamente,
Disse-lhe com um ar de muito bom amigo:
"Ó meu pobre Fiel, tão velho e tão doente,
Ainda que te custe anda daí comigo."

E partiram os dois. Tudo estava deserto.
A noite era sombria; o cais ficava perto;
E o velho condenado, o pobre lazarento,
Cheio de imensas mágoas
Sentiu junto de si um pressentimento
O fundo soluçar monótono das águas.

Compreendeu enfim! Tinha chegado à beira
Da corrente. E o pintor,
Agarrando uma pedra atou-lh'a na coleira,
Friamente cantando uma canção d'amor.

E o rafeiro sublime, impassível, sereno,
Lançava o grande olhar às negras trevas mudas
Com aquela amargura ideal do Nazareno
Recebendo na face o ósculo de Judas.
Dizia para si: "É o mesmo, pouco importa.
Cumprir o seu desejo é esse o meu dever:
Foi ele que me abriu um dia a sua porta:
Morrerei, se lhe dou com isso algum prazer."

Depois, subitamente
O artista arremessou o cão na água fria.
E ao dar-lhe o pontapé caiu-lhe na corrente
O gorro que trazia
Era uma saudosa, adorada lembrança
Outrora concedida
Pela mais caprichosa e mais gentil criança,
Que amara, como se ama uma só vez na vida.

E ao recolher a casa ele exclamava irado:
"E por causa do cão perdi o meu tesouro!
Andava bem melhor se o tinha envenenado!
Maldito seja o cão! Dava montanhas d'oiro,
Dava a riqueza, a glória, a existência, o futuro,
Para tornar a ver o precioso objecto,
Doce recordação daquele amor tão puro."
E deitou-se nervoso, alucinado, inquieto.
Não podia dormir.
Até nascer da manhã o vivido clarão,
Sentiu bater à porta! Ergueu-se e foi abrir.
Recuou cheio de espanto: era o Fiel, o cão,
Que voltava arquejante, exânime, encharcado,
A tremer e a uivar no último estertor,
Caindo-lhe da boca, ao tombar fulminado,
O gorro do pintor!

 

Guerra Junqueiro

02
Jul20

Poesia em tempos de desassossego - Água louca da ribeira, Ricardo Ribeiro

 

POESIA EM TEMPOS DE DESASSOSSEGO

 

ÁGUA LOUCA DA RIBEIRA

Cascata de Tahiti - Gerês

Água louca da ribeira

Que corres em cavalgada

Porque não vai devagar?

Não vês nem olhas p'ra nada

Na pressa de ver o mar.

 

Já corri dessa maneira

Nas asas duma ilusão

Na loucura de chegar

Fui deeixando p'ra ladeira

Pedaços de coração

Beijos loucos sem amar

 

Vida que foste vivida

A correr tão velozmente

Paraste à beira do mar

Agora vives perdida

São saudades o que sentes

Por não poder regressar

 

Ricardo Ribeiro

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