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zassu

30
Jun20

Poesia em tempos de desassossego - Pequena canção à mulher, Maria Teresa Horta

 

POESIA EM TEMPOS DE DESASSOSSEGO

 

PEQUENA CANÇÃO À MULHER

Venus_de_Urbino,_por_Tiziano

(Vénus de Urbino - Ticiano)

 

Onde uma tem

O cetim

A outra tem a rudeza

 

Onde uma tem

A cantiga

A outra tem a firmeza

 

Tomba o cabelo

Nos ombros

 

O suor pela

Barriga

 

Onde uma tem

A riqueza

A outra tem

A fadiga

 

Tapa a nudez

Com as mãos

 

Procura o pão

Na gaveta

 

Onde uma tem

O vestígio

Tem a outra

A pele seca

 

Enquanto desliza

O fato

Pega a outra na

Enxada

 

Enquanto dorme

Na cama

A outra arranja-lhe

A casa

 

Maria Teresa Horta

28
Jun20

Poesia em tempos de desassossego - O ofício da subtil firmeza, João Madureira

 

POESIA EM TEMPOS DE DESASSOSSEGO

 

O OFÍCIO SUBTIL DA FIRMEZA

71n5Dt3FORL._AC_SL1200_

Viver é um ofício de subtil firmeza.

Este ano vingativo está repleto de signos astrais que indiciam a feliz fragilidade das manhãs que sustentam os dias vagos.

Invento para ti a forma perfeita do sentido.

Empreendo o ritmo azul da paciência.

Apuro o ouvido para uma audição atenta da verdade incorruptível.

Estou exposto à infidelidade invisível da nudez.

Permanece incandescente a mutação ténue da eternidade onde a memória da tristeza tende para o infinito.

Sou subjugado pela penitência da viagem, eu o escrivão surdo da melancolia. (…)

O bem e o mal expandem-se sacramentados pela liturgia dos discursos rigorosos dos sábios.

Quem de entre vós preenche o buraco negro do sentido da vida?

Quem de entre vós explica a súbita iluminação dos poemas de espanto?

Quem de entre vós ousa dizer toda a verdade sem sofismas?

Quem de entre vós tem a coragem de incrementar a inteligência milagrosa do deslumbramento?

Definitivamente, o mundo entra na sua luz de assombro.

Definitivamente, o milagre da eucaristia deixa de ser prodigioso.

Os homens sofrem porque se sustentam de frivolidades.

Os homens sofrem quando pensam que se divertem com o esplendor profano do sagrado.

Os homens narram o inenarrável como se fossem os deuses gregos da ausência e da vacuidade… (…)

… Agora eu sei: há definitivamente uma cicatriz antiga em tudo o que escrevo.

Por isso sofro quando me exalto pensando no ritmo da morte.

João Madureira, in O Poema Infinito

 

25
Jun20

Poesia em tempos de desassossego - Poema em linha reta, Álvaro Campos (Fernando Pessoa)

 

POESIA EM TEMPOS DE DESSASSOSSEGO

 

POEMA EM LINHA RETA

O-Sonho-de-um-Homem-Ridículo.-Aleksandr-Petrov-696x522

(Da curta metragem do conto «O sonho de um homem ridículo», de A. Dostoiévski, 1877)


Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...


Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

 

Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)

 

PS - Sugestão do amigo Emídio Almeida

 

Não resistimos em deixar aos(ás) nossos(as) leitores(as), para visualização, a curta metragem do conto de A. Dostoiéski (1877)

O SONHO DE UM HOMEM RIDÍCULO

E não deixem de ler a crítica de Luiz Santiago, em «Revista Prosa Verso e Arte».

 

23
Jun20

Poesia em tempos de desassossego -Menino e Moço, António Nobre

 

POESIA EM TEMPOS DE DESASSOSSEGO

 

MENINO E MOÇO

 

BartolomeEstebanMurillo-Youngboysplayingdice

(Jovens jogando dados, de Bartolomeu Estêvão Murillo, 1618)

 

Tombou

da haste a flor da minha infância alada.

Murchou na jarra de oiro o pudico jasmim:

Voou aos altos céus a pomba enamorada

Que dantes estendia as asas sobre mim.

 

Julguei que fosse eterna a luz dessa alvorada,

E que era sempre dia, e nunca tinha fim

Essa visão de luar que vivia encantada,

Num castelo com torres de marfim!

 

Mas, hoje, as pombas de oiro, aves da minha infância,

Que me enchiam de lua o coração, outrora,

Partiram e no céu evolam-se à distancia!

 

Debalde clamo e choro, erguendo aos céus meus ais:

Voltam na asa do vento os aias que a alma chora,

Elas, porém, senhor, elas não voltam mais...

 

António Nobre

21
Jun20

Poesia em tempos de desassossego - Morte pensada, Vitorino Nemésio

 

POESIA EM TEMPOS DE DESASSOSSEGO

 

MORTE PENSADA

Morte-Adonis

(Morte de Adónis, de François Boucher, 1733)

 

 

Experimentei a Morte na cabeça

(No coração, só se ele parasse).

Mas, por mais que a conheça,

Não se pensa a Morte: dá-se.

Que a morte não é ser, sendo ela tudo,

Nem pessoa será, que tantas leva:

É um lá ou além, último som agudo

A que não chega a voz de vivo. Nem

Chove ou neva

Onde campa é a terra de ninguém.

Não morremos sequer: matamos a alma

Enternecida pelo corpo terno.

E ela lá vai, sua alma sua palma,

Que nem morre no Inferno.

 

Vitorino Nemésio,

de Sapateia Açoriana e Mais Poemas

19
Jun20

Poesia em tempos de desassossego - Mas que sei eu, Ruy Belo

 

POESIA EM TEMPOS DE DESASSOSSEGO

 

MAS QUE SEI EU

folhas-secas-de-laranja-e-amarelas-brilhantes-voando-no-ar-em-um-parque-de-outono-nos-raios-do-sol-da-tarde_116441-6928

Mas que sei eu das folhas no outono

ao vento vorazmente arremessadas

quando eu passo pelas madrugadas

tal como passaria qualquer dono?

 

Eu sei que é vão o vento e lento o sono

e acabam coisas mal principiadas

no ínvio precipício das geadas

que pressinto no meu fundo abandono

 

Nenhum súbito súbdito lamenta

a dor de assim passar que me atormenta

e me ergue no ar como outra folha

 

qualquer. Mas eu que sei destas manhãs?

As coisas vêm vão e são tão vãs

como este olhar que ignoro que me olha.

 

Ruy Belo

17
Jun20

Poesia em tempos de desassossego - Jeito de escrever, Irene Lisboa

 

 

POESIA EM TEMPOS DE DESASSOSSEGO

 

JEITO DE ESCREVER

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Não sei que diga.

E a quem o dizer?

Não sei que pense.

Nada jamais soube.

 

Nem de mim, nem dos outros.

Nem do tempo, do céu e da terra, das coisas...

Seja do que for ou do que fosse.

Não sei que diga, não sei que pense.

 

Oiço os ralos queixosos, arrastados.

Ralos serão?

Horas da noite.

Noite começada ou adiantada, noite.

Como é bonito escrever!

 

Com este longo aparo, bonitas as letras e o gesto - o jeito.

Ao acaso, sem âncora, vago no tempo.

No tempo vago...

Ele vago e eu sem amparo.

Piam pássaros, trespassam o luto do espaço, este sereno

luto das horas. Mortas!

 

E por mais não ter que relatar me cerro.

Expressão antiga, epistolar: me cerro.

Tão grato é o velho, inopinado e novo.

Me cerro!

 

Assim: uma das mãos no papel, dedos fincados,

solta a outra, de pena expectante.

Uma que agarra, a outra que espera...

Ó ilusão!

E tudo acabou, acaba.

Para quê a busca das coisas novas, à toa e à roda?

 

Silêncio.

 

Nem pássaros já, noite morta.

Me cerro.

Ó minha derradeira composição! Do não, do

nem, do nada, da ausência e solidão.

 

Da indiferença.

Quero eu que o seja! da indiferença ilimitada.

Noite vasta e contínua, caminha, caminha.

Alonga-te.

A ribeira acordou.

 

Irene Lisboa

15
Jun20

Poesia em tempos de desassossego - Retrato, Cecília Meireles

 

POESIA EM TEMPOS DE DESASSOSSEGO

RETRATO

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Eu não tinha este rosto de hoje,

Assim calmo, assim triste, assim magro,

Nem estes olhos tão vazios,

Nem o lábio amargo.

 

Eu não tinha estas mãos sem força,

Tão paradas e frias e mortas;

Eu não tinha este coração

Que nem se mostra.

 

Eu não dei por esta mudança,

Tão simples, tão certa, tão fácil:

- Em que espelho ficou perdida

A minha face?

 

Cecília Meireles

 

 

13
Jun20

Poesia em tempos de desassossego - Cinco palavras cinco pedras, Ruy Belo

 

POESIA EM TEMPO DE DESASSOSSEGO

 

CINCO PALAVRAS, CINCO PEDRAS 

 

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Antigamente escrevia poemas compridos

Hoje tenho quatro palavras para fazer um poema

São elas: desalento prostração desolação desânimo

E ainda me esquecia de uma: desistência

Ocorreu-me antes do fecho do poema

E em parte resume o que penso da vida

Passado o dia oito de cada mês

Destas cinco palavras me rodeio

E delas vem a música precisa

Para continuar. Recapitulo:

desistência desalento prostração desolação desânimo

Antigamente quando

OS deuses eram grandes

Eu sempre dispunha de muitos versos

Hoje só tenho cinco palavras cinco pedrinhas.

 

Ruy Belo | "Obra Poética de Ruy Belo" - Vol. 1, pág. 148 | Editorial Presença Lda., 1984

11
Jun20

Poesia em tempos de desassossego - A concha, Vitorino Nemésio

 

POESIA EM TEMPOS DE DESASSOSSEGO

 

A CONCHA

Casa_vitorino_nemesio_4

A minha casa é concha. Como os bichos

Segreguei-a de mim com paciência:

Fechada de marés, a sonhos e a lixos,

O horto e os muros só areia e ausência.

 

Minha casa sou eu e os meus caprichos.

O orgulho carregado de inocência

Se às vezes dá uma varanda, vence-a

O sal que os santos esboroou nos nichos.

 

E telhadosa de vidro, e escadarias

Frágeis, cobertas de hera, oh bronze falso!

Lareira aberta pelo vento, as salas frias.

 

A minha casa... Mas é outra a história:

Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,

Sentado numa pedra de memória.

 

Vitorino Nemésio

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