Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

zassu

10
Mai20

Poesia em tempos de desassossego - Com os mortos, Antero de Quental

 

 

POESIA EM TEMPOS DE DESASSOSSEGO

 

COM OS MORTOS

rogers-6

Os que amei, onde estão? idos, dispersos,

arrastados no giro dos tufões,

Levados, como em sonho, entre visões,

Na fuga, no ruir dos universos...

 

E eu mesmo, com os pés também imersos

Na corrente e à mercê dos turbilhões,

Só vejo espuma lívida, em cachões,

E entre ela, aqui e ali, vultos submersos...

 

Mas se paro um momento, se consigo

Fechar os olhos, sinto-os a meu lado

De novo, esses que amei vivem comigo,

 

Vejo-os, ouço-os e ouvem-me também,

Juntos no antigo amor, no amor sagrado,

Na comunhão ideal do eterno Bem.

 

Antero de Quental, in "Sonetos"

08
Mai20

Poesia em tempos de desassossego - Beijo a beijo, Rosa Lobato Faria

 

POESIA EM TEMPOS DE DESASSOSSEGO

 

BEIJO A BEIJO

20928414_1z69P

E de novo a armadilha dos abraços.

E de novo o enredo das delícias.

O rouco da garganta, os pés descalços

a pele alucinada de carícias.

As preces, os segredos, as risadas

no altar esplendoroso das ofertas.

De novo beijo a beijo as madrugadas

de novo seio a seio as descobertas.

Alcandorada no teu corpo imenso

teço um colar de gritos e silêncios

a ecoar no som dos precipícios.

E tudo o que me dás eu te devolvo.

E fazemos de novo, sempre novo

o amor total dos deuses e dos bichos.

 

Rosa Lobato Faria, in 'Dispersos'

06
Mai20

Poesia em tempos de desassossego - Gritamos em erupção, Valter Hugo Mãe

 

POESIA EM TEMPOS DE DESASSOSSEGO

 

GRITAMOS EM ERUPÇÃO

o-grito-remake

gritamos em erupção

persuadidas pelo ventre que

nos imagina os filhos, e

recebemos o silêncio pênsil dessa

angústia, com o corpo muito

só e em redor da casa, o

chão da cozinha ainda

húmido, as portas abertas por

onde a aragem da tarde

cata a nossa voz e empurra

as vizinhas

 

 Valter Hugo Mãe

05
Mai20

Esta língua que nos une - 5 de maio - Dia Mundial da Língua Portuguesa

 

ESTA LíNGUA QUE NOS UNE

 

5 de Maio - Dia Mundial da Língua Portuguesa

 

Foi ratificada em Paris, no dia 25 de novembro de 2019, a decisão que estipula o dia 5 de maio como o Dia Mundial da Língua Portuguesa, promovido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO).

 

Esta é a primeira vez que uma língua não oficial da organização é distinguida com um dia Mundial. A proposta foi apresentada por todos os países lusófonos em outubro de 2019 e foi apoiada por mais 24 países como Argentina, Chile, Geórgia, Luxemburgo ou Uruguai, o que resultou numa aprovação por unanimidade no conselho da UNESCO a 12 de novembro. A proposta aprovada afirmava que o português é a língua mais falada e difundida no hemisfério sul e tem no mundo 265 milhões de falantes, tendo sido o idioma da primeira vaga da globalização.

 

Ouçamos a Mensagem da Diretora-geral da UNESCO.

 

De uma escritora brasileira, aqui nos fica o poema

 

LÍNGUA PORTUGUESA

naom_5be225c9641d4

Tanto mar, tanto mar

Cada gota uma palavra

Uma história para contar

Raiz em águas profundas

Cultura que me faz achar

Em mar calmo e bravio

No que eu quero imaginar

Tudo que sei mora nela

E não há como negar

Traduz os meus sentimentos

Não deixa nada faltar

É nela que me encontro

Seja para rir ou chorar

Minha língua portuguesa

Minha morada

Meu lar.

 

Gisele Gama

22876117_770x433_acf_cropped

 

03
Mai20

Dia da Mãe - Mãe, Miguel Torga

 

DIA DA MÃE

MÃE

 

Hoje é o Dia da Mãe.

 

Para aqueles que já não a têm entre eles, aqui fica este poema - tão a propósito - do nosso poeta maior - Miguel Torga.

Mãe

 

 

Mãe:

Que desgraça na vida aconteceu,

Que ficaste insensível e gelada?

Que todo o teu perfil se endureceu

Numa linha severa e desenhada?

 

Como as estátuas, que são gente nossa

Cansada de palavras e ternura,

Assim tu me pareces no teu leito.

Presença cinzelada em pedra dura,

Que não tem coração dentro do peito.

 

Chamo aos gritos por ti — não me respondes.

Beijo-te as mãos e o rosto — sinto frio.

Ou és outra, ou me enganas, ou te escondes

Por detrás do terror deste vazio.

 

Mãe:

Abre os olhos ao menos, diz que sim!

Diz que me vês ainda, que me queres.

Que és a eterna mulher entre as mulheres.

Que nem a morte te afastou de mim!

 

Miguel Torga, in 'Diário IV'

03
Mai20

Poesia em tempos de desassossego - O Ator, Herberto Hélder

 

POESIA EM TEMPOS DE DESASSOSSEGO

 

O ATOR

Passos em Volta2

O ator acende a boca. Depois os cabelos.
Finge as suas caras nas poças interiores.
O ator põe e tira a cabeça
de búfalo.
De veado.
De rinoceronte.
Põe flores nos cornos.
Ninguém ama tão desalmadamente
como o ator.
O ator acende os pés e as mãos.
Fala devagar.
Parece que se difunde aos bocados.
Bocado estrela.
Bocado janela para fora.
Outro bocado gruta para dentro.
O ator toma as coisas para deitar fogo
ao pequeno talento humano.
O ator estala como sal queimado.

O que rutila, o que arde destacadamente
na noite, é o ator, com
uma voz pura monotonamente batida
pela solidão universal.
O espantoso ator que tira e coloca
e retira
o adjetivo da coisa, a subtileza
da forma,
e precipita a verdade.
De um lado extrai a maçã com sua
divagação de maçã.
Fabrica peixes mergulhados na própria
labareda de peixes.
Porque o ator está como a maçã.
O ator é um peixe.

Sorri assim o ator contra a face de Deus.
Ornamenta Deus com simplicidades silvestres.
O ator que subtrai Deus de Deus, e
dá velocidade aos lugares aéreos.
Porque o ator é uma astronave que atravessa
a distância de Deus.
Embrulha. Desvela.
O ator diz uma palavra inaudível.
Reduz a humidade e o calor da terra
à confusão dessa palavra.
Recita o livro. Amplifica o livro.
O ator acende o livro.
Levita pelos campos como a dura água do dia.
O ator é tremendo.
Ninguém ama tão rebarbativamente como o ator.
Como a unidade do ator.

O ator é um advérbio que ramificou
de um substantivo.
E o substantivo retorna e gira,
e o ator é um adjetivo.
É um nome que provém ultimamente
do Nome.
Nome que se murmura em si, e agita,
e enlouquece.
O ator é o grande Nome cheio de holofotes.
O nome que cega.
Que sangra.
Que é o sangue.
Assim o ator levanta o corpo,
enche o corpo com melodia.
Corpo que treme de melodia.
Ninguém ama tão corporalmente como o ator.
Como o corpo do ator.

Porque o talento é transformação.
O ator transforma a própria ação
da transformação.
Solidifica-se. Gaseifica-se. Complica-se.
O ator cresce no seu ato.
Faz crescer o ato.
O ator atifica-se.
É enorme o ator com sua ossada de base,
com suas tantas janelas,
as ruas -
o ator com a emotiva publicidade.
Ninguém ama tão publicamente como o ator.
Como o secreto ator.

Em estado de graça. Em compacto
estado de pureza.
O ator ama em ação de estrela.
Ação de mímica.
O ator é um tenebroso recolhimento
de onde brota a pantomina.
O ator vê aparecer a manhã sobre a cama.
Vê a cobra entre as pernas.
O ator vê fulminantemente
como é puro.
Ninguém ama o teatro essencial como o ator.
Como a essência do amor do ator.
O teatro geral.

O ator em estado geral de graça.

 

Herberto Hélder

PS - poema sugerido pelo amigo Marcelino de Sousa Lopes

 

 

01
Mai20

Ao Acaso... Dia Internacional do Trabalhador em tempos de Estado(s) de Crise

 

AO ACASO…

DIA INTERNACIONAL DO TRABALHADOR EM TEMPOS DE ESTADO(S) DE CRISE

04_corda-se-rompendo

Assistimos, invariavelmente, neste dia, todos os anos, e neste não foi exceção – apesar das fortes limitações a que estamos sujeitos pela pandemia por que passamos e por via do estado de emergência – a fortes manifestações dos trabalhadores, que denunciam a postergação e a precaridade dos seus direitos, constitucionalmente consignados, nomeadamente, quer no que se refere às suas condições de trabalho, quer à forma como são remunerados numa sociedade neoliberal, como aquela em que vivemos. Em que a política dos governos, territorialmente confinados ou adstritos, são ineficazes ou inoperantes, face ao poder da «mão invisível» do Mercado Global.

 

O estado westfaliano, que herdámos do século XIX, deixou, nos tempos de hoje, de ter qualquer sentido e/ou eficácia: existe um poder, circunscrito territorialmente. Mas as escolhas políticas estão fortemente condicionados, porquanto, as mesmas, já não estão nesse poder eleito pela cidadania. Manifestamente, estamos perante uma evidente e decisiva separação entre poder e política, ou seja, entre a real capacidade de levar coisas a cabo (poder) e a habilidade em decidir que coisas são necessárias e devem ser feitas (política). Os governos são reféns de um poder (global) que lhes escapa ao seu efetivo e real controlo!

 

Caso bem patente é o estado pandémico porque todo o mundo passa. Vemos, cada Estado em palco, dar respostas locais a um problema, quando, na verdade, a resposta deveria ter uma solução global.

 

E já para não falar nas medidas, não só de caráter profilático, mas, essencialmente, económicas, que devem ser tomadas.

 

E a resposta que mais sentimos é: - que se avenha. Quando todos nós sabemos que no estado das sociedades em que vivemos, tal como os problemas que temos, a resposta deve ser global.

 

Particularmente na Europa em que vivemos.

 

O tempo de confinamento a que fomos sujeitos levou-nos a que puséssemos em dia algumas leituras, que aguardavam nas estantes pela sua sempre adiada vez- E relêssemos outras. Numa das obras - «O Estado de Crise» - de Carlo Bordoni e Zygmunt Bauman, Ao Acaso… relíamos o seguinte, da autoria de Z. Bauman:

“J.M. Coetzee, um dos maiores filósofos vivos entre os romancistas e um dos romancistas mais consumados entre os filósofos, observou no seu Diário de Um Mau Ano que «A questão do porquê de a vida dever ser comparada com uma corrida, ou do porquê das economias nacionais terem de se desafiar umas às outras, em lugar de se unirem numa caminhada de companheirismo, por motivos de saúde, não é levantada. E acrescenta:

Mas não foi certamente Deus que fez o mercado; nem Deus nem o Espírito da História. E, se fomos nós, os seres humanos, que o fizemos, porque não podemos desfazê-lo e refazê-lo de uma forma mais simpática? Porque razão tem o mundo de ser um anfiteatro gladiatório onde se mata ou se é morto, em lugar de ser, por exemplo, uma colmeia ou um formigueiro diligentemente cooperativos?’

(…) Devemos ter em mente a pergunta de Coetzee sempre que tentarmos compreender a delicada situação da União Europeia, sempre que quisermos saber como nos metemos nisso e quais são, se houver, as saídas não trancadas para sempre. As necessidades de hoje são apenas restos sedimentados e petrificados das escolhas de ontem – exatamente como as escolhas de hoje originam as verdades emergentes de amanhã”

 

Palavras bem atuais para os tempos que correm…

 

E, assim, deixamos hoje aos nossos leitores (trabalhadores) esta reflexão, em Dia Internacional do Trabalhador.

01
Mai20

Poesia em tempos de desassossego - Carta a meus filhos, Jorge de Sena

 

POESIA EM TEMPOS  DE DESASSOSSEGO

 

CARTA A MEUS FILHOS

F. de Goya-Os fuzilamentos de 3 de Maio

(Os Fuzilamentos de Goya)


Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente â secular justiça,
para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue.»
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de urna classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadela de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de té-1a.
É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém
está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -
não hão-de ser em vão. Confesso que
multas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objeto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam «amanhã».
E. por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.

Jorge de Sena

PS - Sugestão enviada pelo amigo Marcelino de Sousa Lopes

Pág. 2/2

Sobre mim

foto do autor

Pesquisar

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Comentários recentes

Arquivo

    1. 2023
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2022
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2021
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2020
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2019
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2018
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2017
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2016
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2015
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2014
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2013
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2012
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D

Em destaque no SAPO Blogs
pub