Poesia em tempos de desassossego - À saída do correio, António Cabral
POESIA EM TEMPOS DE DESASSOSSEGO
À SAÍDA DO CORREIO
– Donde vem a carta,
senhora Maria?
– Vem da capital
é da Companhia.
(A Maria Pêdra
tem um ar de pedra
onde nem deixaram
crescer uma erva).
– E que diz a carta,
senhora Maria?
– Que no Douro o sol
nasce ao meio-dia.
(A Maria Pêdra
fala como quem
entra numa igreja
e não vê ninguém).
– É sobre o seu filho,
senhora Maria?
– Tivesse eu dinheiro
que nada haveria.
(A Maria Pêdra
tem no pensamento
um velho estandarte
flutuando ao vento).
– Mas que diz a carta,
senhora Maria?
– Pudesse eu falar
contra a Companhia!…
(A Maria Pêdra
é como o poeta
que mete os poemas
dentro da gaveta).
António Cabral
PS - O poema “À saída do correio” foi originalmente publicado em Os homens cantam a Nordeste (1967). Francisco Fanhais musicou-o e inclui-o no álbum Canções da cidade nova (1970), considerado um disco de combate à ditadura de Salazar. Poema e canção vieram mais tarde a ser incluídos na Antologia dos poemas durienses (1999) e no álbum de Fanhais ‘Dedicatória’ (1998).
Durante este período não eram só as palavras dos escritores e/ou dos opositores ao regime que eram violadas e esquartejadas. Mesmo em situações mais quotidianas, como a correspondência de cada português, era notória a interferência da censura já que havia uma primeira leitura que não era a do seu destinatário.
Paula Morais in Portugal sob a égide da ditadura (2005)