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zassu

30
Mai20

Poesia em tempos de desassossego - À saída do correio, António Cabral

 

POESIA EM TEMPOS DE DESASSOSSEGO

 

À SAÍDA DO CORREIO

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– Donde vem a carta,

senhora Maria?

– Vem da capital

é da Companhia.

 

(A Maria Pêdra

tem um ar de pedra

onde nem deixaram

crescer uma erva).

 

– E que diz a carta,

senhora Maria?

– Que no Douro o sol

nasce ao meio-dia.

 

(A Maria Pêdra

fala como quem

entra numa igreja

e não vê ninguém).

 

– É sobre o seu filho,

senhora Maria?

– Tivesse eu dinheiro

que nada haveria.

 

(A Maria Pêdra

tem no pensamento

um velho estandarte

flutuando ao vento).

 

– Mas que diz a carta,

senhora Maria?

– Pudesse eu falar

contra a Companhia!…

 

(A Maria Pêdra

é como o poeta

que mete os poemas

dentro da gaveta).

 

António Cabral

 

PS - O poema “À saída do correio” foi originalmente publicado em Os homens cantam a Nordeste (1967). Francisco Fanhais musicou-o e inclui-o no álbum Canções da cidade nova (1970), considerado um disco de combate à ditadura de Salazar. Poema e canção vieram mais tarde a ser incluídos na Antologia dos poemas durienses (1999) e no álbum de Fanhais ‘Dedicatória’ (1998).

Durante este período não eram só as palavras dos escritores e/ou dos opositores ao regime que eram violadas e esquartejadas. Mesmo em situações mais quotidianas, como a correspondência de cada português, era notória a interferência da censura já que havia uma primeira leitura que não era a do seu destinatário.

Paula Morais in Portugal sob a égide da ditadura (2005)

28
Mai20

Poesia em tempos de desassossego - Faz-me o favor, Mário Cesariny

 

POESIA EM TEMPOS DE DESASSOSSEGO

 

FAZ-ME O FAVOR

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(Velasquez - Vénus ao espelho)

Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!

Supor o que dirá

Tua boca velada

É ouvir-te já.

 

É ouvir-te melhor

Do que o dirias.

O que és não vem à flor

Das caras e dos dias.

 

Tu és melhor - muito melhor! -

Do que tu. Não digas nada. Sê

Alma do corpo nu

Que do espelho se vê.

 

Mário Cesariny

28
Mai20

Poessia em tempos de desassossego - Uma amiga, Antero de Quental

 

POESIA EM TEMPOS DE DESASSOSSEGO

 

UMA AMIGA

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Aqueles que eu amei, não sei que vento

Os dispersou no mundo, que os não vejo...

Estendo os braços e nas trevas beijo

Visões que a noite evoca o sentimento...

 

Outros me causam mais cruel tormento

Que a saudade dos mortos... que eu invejo...

Passam por mim... mas como que têm pejo

Da minha soledade e abatimento!

 

Daquela primavera venturosa

Não resta uma flor só, uma só rosa...

Tudo o vento varreu, queimou o gelo!

 

Tu só foste fiel - tu, como dantes,

Inda volves teus olhos radiantes...

Para ver o meu mal... e escarnecê-lo!

 

Antero de Quental

26
Mai20

Poesia em tempos de desassossego - No turbilhão, Antero de Quental

 

POESIA EM TEMPOS DEE DESASSOSSEGO

 

NO TURBILHÃO

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No meu sonho desfilam as visões,

Espectros dos meus próprios pensamentos,

Como um bando levado pelos ventos,

arrebatado em vastos turbillhões...

 

Num espiral, de estranhas contorções,

E donde saem gritos e lamentos,

Vejo-os passar, em grupos nevoentos,

Distingo-lhes, a espaços, as feições...

 

Fantasmas de mim mesmo e da minha alma,

Que me fitais com formidável calma,

Levados na onda turva do escarcéu,

 

Quem sois vós, meus irmãos e meus algozes?

Quem sois, visões misérrimas e atrozes?

Ai de mim! ai de mim! e quem sou eu?!...

 

Antero de Quental

23
Mai20

Poesia em tempos de desassossego - Vem, Serenidade, Raúl de Carvalho

 

POESIA EM TEMPOS DE DESASSOSSEGO

 

VEM, SERENIDADE!

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Vem, serenidade!

Vem cobrir a longa

fadiga dos homens,

este antigo desejo de nunca ser feliz

a não ser pela dupla humidade das bocas.

 

Vem, serenidade!

faz com que os beijos cheguem à altura dos ombros

e com que os ombros subam à altura dos lábios,

faz com que os lábios cheguem à altura dos beijos.

 

Raúl de Carvalho

21
Mai20

Poesia em tempos de desassossego - Adeus, Eugénio de Andrade

 

POESIA EM TEMPOS DE DESASSOSSEGO

 

ADEUS

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Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,

e o que nos ficou não chega

para afastar o frio de quatro paredes.

Gastámos tudo menos o silêncio.

Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,

gastámos as mãos à força de as apertarmos,

gastámos o relógio e as pedras das esquinas

em esperas inúteis.

 

Meto as mãos nas algibeiras

e não encontro nada.

Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!

Era como se todas as coisas fossem minhas:

quanto mais te dava mais tinha para te dar.

 

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!

E eu acreditava!

Acreditava,

porque ao teu lado

todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,

no tempo em que o teu corpo era um aquário,

no tempo em que os teus olhos

eram peixes verdes.

Hoje são apenas os teus olhos.

É pouco, mas é verdade,

uns olhos como todos os outros.

 

Já gastámos as palavras.

Quando agora digo: meu amor...

já não se passa absolutamente nada.

 

E, no entanto, antes das palavras gastas,

tenho a certeza

de que todas as coisas estremeciam

só de murmurar o teu nome

no silêncio do meu coração.

 

Não temos nada que dar.

Dentro de ti

Não há nada que me peça água.

O passado é inútil como um trapo.

E já te disse: as palavras estão gastas.

 

Adeus.

 

Eugénio de Andrade

19
Mai20

Poesia em tempos de desassossego - Nihil, Antero de Quental

 

POESIA EM TEMPOS DE DESASSOSSEGO

 

NIHIL

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Homem!

Homem! Mendigo do Infinito!

Abres a boca e estendes os teus braços

A ver se os astros caem dos espaços

A encher o vácuo imenso do  finito!

 

Porque sobes à  rocha de granito?

Porque é que dás no ar tantos abraços?

E cuidas amarrar com férreos laços

Um reflexo da sombra de um espírito?

 

Vê que o céu, por escárnio, a luz nos lança!

Que, à tua voz, a  voz da imensidão

Responde com imensa gargalhada!

 

A ideia fechou a porta à esperança

Quando lhe foi pedir agasalho e pão....

Deixou-a cara a cara com o Nada!! ..

 

Antero de Quental

17
Mai20

Poesia em tempos de desassossego - Guio-me, Raúl de Carvalho

 

POESIA EM TEMPOS DE DESASSOSSEGO

 

GUIO-ME

coroa louro

Guio-me

Por teus olhos abertos

Sobre a trêmula e ardente

Superfície das lágrimas.

 

De tantas coisas

É feito o Mundo!

 

Entre escombros, espigas, dias e noites

Procuram os homens ansiosamente

O ramo de louro.

 

Quando, fatigados,

Próximos estão do limiar, do pórtico,

Os homens deixam, à entrada,

Suas mais queridas coisas.

 

E ei-los que apenas se incomodam,

E se interrogam,

Sobre o modo mais simples

De se despir e adormecer.

 

RaÚl de Carvalho

15
Mai20

Poesia em tempos de desassossego - Fronteira, Fernando Pinto do Amaral

 

POESIA EM TEMPOS DE DESASSOSSEGO

 

FRONTEIRA

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É doce

a tentação do labirinto

assim que o sono chega e se propaga

ao contorno das coisas. mal as sinto

quando confundo a onda sempre vaga

 

deste falso cansaço que regressa

ao som da minha estranha e dócil fala

cada vez mais submersa como essa

pequena luz da rua que resvala

 

pelo interior da noite. É quase um sonho

A respirar lá fora enquanto o quarto

se dilui na fronteira que transponho

e afoga a consciência de onde parto

 

agora sem direito nem avesso

no incerto momento em que adormeço.

 

Fernando Pinto do Amaral

 

13
Mai20

Poesia em tempos de desassossego - Conquista, Miguel Torga

 

POESIA EM TEMPOS DE DESASSOSSEGO 

 

CONQUISTA

Grilhão

Livre não sou, que nem a própria vida

Mo consente.

Mas a minha aguerrida

Teimosia

É quebrar dia a dia

Um grilhão da corrente.

 

Livre não sou, mas quero a liberdade.

Trago-a dentro de mim como um destino.

E vão lá desdizer o sonho do menino

Que se afogou e flutua

Entre nenúfares de serenidade

Depois de ter a lua!

 

Miguel Torga, in 'Cântico do Homem'

Pág. 1/2

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