zassu

POESIA E FOTOGRAFIA

POEMAS NOS DIÁRIOS DE MIGUEL TORGA

DUNAS

Areia velha, cansada
De movimento.
Sempre jovem, o vento
Passa num desafio.
Mas só deixa, adivinhada,
A sombra de um arrepio
Na sonolência ondulada...

Palheirão da Tocha, 6 de Julho de 1969

POESIA E FOTOGRAFIA
 
POEMAS NOS DIÁRIOS DE MIGUEL TORGA

ENTARDECER

Longa sutura a unir
A voz do mar
E o silêncio da terra,
A estrema do areal
É um verso branco, tactil, ondulado;
Cansado de brilhar,
O sol desce e coalha
Em acres e vidradas cantarinhas;
Deitada à sombra da sua beleza,
Uma Vénus humana, seminua,
Purifica a impureza
A olhar as vagas onde o céu flutua.

Nazaré, 13 de Agosto de 1969

POESIA E FOTOGRAFIA

POEMAS NOS DIÁRIOS DE MIGUEL TORGA

ANTEVIDÊNCIA

Tarde policromada e perfumada,
De zumbidos contentes
E mudez refletida...
Urgente e previdente
Em cada vida,
Bruta ou racional,
O instinto vital
Canta ou pondera,
A dar sentido às flores da primavera...

S. Martinho de Anta, 8 de Maio de 1969

POESIA E FOTOGRAFIA

POEMAS NOS DIÁRIOS DE MIGUEL TORGA

BOLETIM

Tarde limpa,
De pureza comungada.
No rio, corre, parada,
A paisagem refletida;
Há não sei que voz traída
No silêncio do que é mudo;
A luz parece despida;
E uma alegria incontida
Sorri no rosto de tudo.

Coimbra, 17 de Abril de 1969

POESIA E FOTOTGRAFIA

POEMAS NOS DIÁRIOS DE MIGUEL TORGA

ANUNCIAÇÃO

Surdo murmúrio do rio,
A deslizar, pausado, na planura.
Mensageiro moroso
Dum recado comprido,
Di-lo sem pressa ao alarmado ouvido
Dos salgueirais:
A neve derreteu
Nos píncaros da serra;
O gado berra
Dentro dos currais,
A lembrar aos zagais
O fim do cativeiro;
Anda no ar um perfumado cheiro
A terra revolvida;
O vento emudeceu;
O sol desceu;
A primavera a chegar, florida.

Coimbra, 15 de Março de 1969

POESIA E FOTOGRAFIA
 
POEMAS NOS DIÁRIOS DE MIGUEL TORGA

ÊXTASE

Terra, minha medida!
Com que ternura te encontro
Sempre inteira nos sentidos!
Sempre redonda nos olhos,
Sempre segura nos pés,
Sempre a cheirar a fermento!
Terra amada!
Em qualquer sítio e momento,
Enrugada ou descampada,
Nunca te desconheci!
Berço do meu sofrimento,
Cabes em mim, e eu em ti!

Monforte do Alentejo, 28 de Dezembro de 1968