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POESIA E FOTOGRAFIA

POEMAS NOS DIÁRIOS DE MIGUEL TORGA

CONTEMPLAÇÃO

Estrelas...
Não as parnasianas de Bilac,
Mas as de sempre, rútilo rebanho
Que a emoção tosquia.
A noite humana neste mar deserto
A olhar o céu, coberto De poesia.

A bordo, 3 de Agosto de 1954

POESIA E ARTE

POEMAS NOS DIÁRIOS DE MIGUEL TORGA

JONAS

Do ventre da baleia me interrogo;
Da negrura do ventre
Do navio em que vou, monstro marinho:
De que Nínive fujo, e a que Társis me leva
Este caminho?

Ah, se os poetas fossem como outrora
Instrumentos de Deus!
Não teriam no mundo, como eu tenho agora,
A trágica incerteza
Do seu destino.
Devorados ou não,
Iam sempre na mesma direção
Do roteiro divino.

A bordo, 31 de Julho de 1954

POESIA E FOTOGRAFIA

POEMAS NOS DIÁRIOS DE MIGUEL TORGA

MISSÃO

Sou poeta,
Vou de poeta,
E são versos que sei.
Versos, pois, vos direi,
Ouvintes verdadeiros!
O mar também só diz
O que sabe:
Que não cabe
Nos abissais sepulcros onde mora,
E por isso transborda o sofrimento
Em ondas de ilusão - versos em movimento,
Que o infinito lê e a solidão decora.

A bordo, 27 de Julho de 1954

POESIA E FOTOGRAFIA

POEMAS NOS DIÁRIOS DE MIGUEL TORGA

DEPOIMENTO

Ah, sim, bom cidadão quotidiano!
É consultar o rol
Dos moradores honrados da cidade...
Como eles, sofro e mourejo
Sem vontade
À luz do mesmo sol
De quem nem vejo
A claridade.

Mas quando já eu próprio sinto gosto
Nas mataduras do selim do tempo,
E acarinho a marca
Das vergastadas mansas
Da rotina,
Então fujo de mim, como as crianças
Fogem da escola onde o mestre ensina.

Coimbra, 10 de Junho de 1954

POESIA E FOTOGRAFIA

POEMAS NOS DIÁRIOS DE MIGUEL TORGA

PIROTECNIA

Faço poemas de papel e tinta,
Sou fogueteiro destes artifícios.
Versos...
Girândolas de sonho e cilícios
Alinhadas no chão
Das laudas de brancura onde me iludo.
Quando a noite é de mais,
E o sol de nenhum mundo dá sinais,
Ardem dentro de mim, com lágrimas e tudo.

Coimbra, 31 de Maio de 1954