POESIA E FOTOGRAFIA
POEMAS NOS DIÁRIOS DE MIGUEL TORGA
RETRATO
O meu perfil é duro como o perfil do mundo.
Quem adivinha nele a graça da poesia?
Pedra talhada a pico e sofrimento,
É um muro hostil à volta do pomar.
Lá dentro há frutos, há frescura, há quanto
Faz um poema doce e desejado;
Mas quem passa na rua
Nem sequer sonha que do outro lado
A paisagem da vida continua.
Coimbra, 12 de Março de 1952
POESIA E FOTOGRAFIA
POEMAS NOS DIÁRIOS DE MIGUEL TORGA
RENÚNCIA
Como nunca vieste, já não venhas.
O mais rico tesouro é o que se nega.
Ágil veleiro doutros mares, navega
Com as asas que tenhas!
Foge de ti, porque de mim fugiste.
Alarga a solidão que me consome.
A apaga na memória a praia triste
Onde eu pergunto às ondas o teu nome.
Coimbra, 6 de Março de 1952
POESIA E FOTOGRAFIA
POEMAS NOS DIÁRIOS DE MIGUEL TORGA
REGRESSO
Regresso às fragas de onde me roubaram.
Ah! minha serra, minha dura infância!
Como os rijos carvalhos me acenaram,
Mal eu surgi, cansado na distância!
Cantava cada fonte à sua porta:
O poeta voltou!
Atrás ia ficando a terra morta
Dos versos que o desterro esfarelou.
Depois o céu abriu-se num sorriso,
E eu deitei-me no colo dos penedos
A contar aventuras e segredos
Aos deuses do meu velho paraíso.
S. Martinho de Anta, Natal de 1951
POESIA E FOTOGRAFIA
POEMAS NOS DIÁRIOS DE MIGUEL TORGA
MALDIÇÃO
Não insistam comigo.
A mim já só me salva o Inimigo...
Quero desassossego.
De nada mais preciso.
Sou contra qualquer céu ou paraíso
Sem penas, como as asas de um morcego...
Coimbra, 12 de Novembro de 1951
(In:- http://www.esa.ipb.pt/~verao/pedro/index.php/morcego)
POESIA E FOTOGRAFIA
POEMAS NOS DIÁRIOS DE MIGUEL TORGA
CONTÁGIO
Há uma esperança:
A constância otimista da alvorada.
Quando os galos começam,
E o melro meu vizinho, abre a janela,
Qual desespero qual desilusão!
Como cadáveres que ressuscitassem,
Os versos endireitam-se, renascem,
E mesmo incertos, a manear, lá vão...
Coimbra, 15 de Setembro de 1951
POESIA E ARTE
POEMAS NOS DIÁRIOS DE MIGUEL TORGA
A UM CRISTO DE MANUEL PEREIRA
Brando e pequeno Cristo português,
Dançarino do Minho numa cruz:
Chagas sem nenhum pus,
Abertas na pureza da nudez.
Nem amargura, nem desprezo, apenas
A dor humana de qualquer mortal;
A dor discreta de quem sofre penas
À medida de um corpo natural.
Aqui me tens ao pé, teu companheiro
Do lirismo modesto e tolerante
Que tem a morte do perfeito amante
Que se desculpa de partir primeiro...
Segóvia, 11 de Setembro de 1951
POESIA E FOTOGRAFIA
POEMAS NOS DIÁRIOS DE MIGUEL TORGA
MADRIGAL
Minha Galiza de perfil bonito,
Órfã de pátria num asilo austero:
Só por seres portuguesa é que te quero,
E por seres castelhana te acredito.
Pontevedra, 5 de Setembro de 1951
POESIA EARTE
POEMAS NOS DIÁRIOS DE MIGUEL TORGA
RETÁBULO
Debaixo de ramadas de silêncio
Um Baco melancólico medita.
Gasto, o seu coração já não palpita
Com a força do mosto encarcerado
Na redonda prisão de cada bago.
E o sol da vida, que num doce trago
Bebia a cada hora,
Nem lhe apetece, nem o aquece, agora.
Morrem os deuses quando desesperam.
Quando não podem, como já puderam.
Ressuscitar do corpo a cada instante.
Quando a dor que os magoa é semelhante
À dor que os inventou - necessidade
De raras perfeições quotidianas
Que parecem divinas e humanas
E tenham neste mundo eternidade.
Caldelas, 23 de Agosto de 1951
POESIA E FOTOGRAFIA
POEMAS NOS DIÁRIOS DE MIGUEL TORGA
ALVORADA
A lança da manhã furou-me os olhos.
Vejo! Vejo outra vez
A brancura da cal rir-se, contente
De me ver!
Também ela, com luz, ressuscitou,
E de mim ou do sol vai receber
O poema que a noite lhe roubou!
Coimbra, 25 de Julho de 1951
POESIA E FOTOGRAFIA
POEMAS NOS DIÁRIOS DE MIGUEL TORGA
MERGULHO
Tirem o céu da sua altura triste;
Olhem a cor do inferno aqui no chão:
Verde-esmeralda que, se não existe,
É um milagre de luz em cada mão.
Anjos de barro, o nosso espelho apenas
Deve ser o cristal que viu Narciso:
Água dum poço de ilusões pequenas
Onde morra e renasça o Paraíso.
Serra da Estrela, Poço do Inferno, 22 de Julho de 1951