POESIA E FOTOGRAFIA
POEMAS NOS DIÁRIOS DE MIGUEL TORGA
RETRATO
Quando o trabalho acabou,
A tarde tornou-se alegre
E durou pouco.
Contra o próprio desalento,
O sol vestiu-se de novo
E doirou por um momento
O suor frio do povo.
Bandos de patos, ao longe,
Livres, passaram em seta.
E foi então que o Poeta,
Maluco, mas inspirado,
Descobriu que a sua imagem
Era o fulgor da paisagem
Num momento descansado.
Coimbra, 12 de Novembro de 1947
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POEMAS NOS DIÁRIOS DE MIGUEL TORGA
ENIGMA
Que lei rege o poeta, ninguém sabe;
Que arcanjo o vela, também não.
Um poeta não cabe
Na sina que se lê na sua mão.
Coimbra, 14 de Outubro de 1947
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POEMAS NOS DIÁRIOS DE MIGUEL TORGA
PARTO
A tarde cai repousada
Como rainha parida.
Varejada,
Vindimada,
Já cumpriu a sua vida.
No travesseiro de folhas
Há manchas tintas de mosto.
E o povo canta de gosto,
Por ter o pão que merece.
Mas nada perturba o rosto
Da rainha,
Que adormece
Magnífica e sozinha.
S. Martinho de Anta, 11 de Outubro de 1947
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POEMAS NOS DIÁRIOS DE MIGUEL TORGA
ALQUIMIA
Arrefece.
A fogueira do sol vai-se apagando
Na casca das maçãs que amadurece.
Não havendo uma Eva
Que no inverno, depois, venha tentar
O homem,
O sol e a vida podem-se encontrar
Nas maçãs que se comem.
S. Martinho de Anta, 21 de Setembro de 1947
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POEMAS NOS DIÁRIOS DE MIGUEL TORGA
ÀS NINFAS, POR UM VOTO
Por vós, virgens eternas,
Bebo
Água das fontes.
Ajoelho
No altar das nascentes,
E beijo-vos no espelho
Onde sois impossíveis e presentes.
Porque a sede que tenho
É de deusas despidas.
É de formas divinas, diluídas
No desejo terreno
De um homem de paixões descomedidas
Num corpo miserável e pequeno.
Caldelas, 23 de Agosto de 1947
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POEMAS NOS DIÁRIOS DE MIGUEL TORGA
TESTAMENTO
Meu testamento de Poeta, quero
Que fique na pureza destas ilhas,
Gravado pelas ondas sem sossego.
Para que o leia o sol,
E o vento,
E quem goste da Vida em movimento,
- Só escrito
Nestas folhas de espuma e de granito.
Em versos com medida das marés.
Rodeada de cor e solidão,
Talvez tenha beleza a doação,
E sentido...
Talvez que finalmente eu seja ouvido,
E cada herdeiro queira o seu quinhão.
(A riqueza que tenho,
Só em fraga despida
E com velas à vista
A posso dar a alguém...
Sou artista
Por humana conquista
E por me ter parido minha mãe.)
Mas se ninguém quiser o meu legado,
Nestes penedos, recusado,
Terás asas em cima...
Asas abertas sobre cada rima
De silêncio salgado.
Aqui portanto, fique.
Como um ovo num ninho de saudade.
E que ninguém o modifique.
Só este texto indique
A minha última vontade.
*
Deixo...
(Os poetas, coitados,
Têm quintais de papéis desarrumados
E barras de oiro... quando a tarde cai...)
Deixo...
Mas a herança aqui vai.
*
Nenhum de nós desista, se é verdade!
Ligado às próprias achas da fogueira,
Mantenha-se por toda a eternidade
Senhor da sua inteira liberdade
De dizer o que queira.
Tenha amor aos sentidos
E a toda a criadora excitação.
Pouse na terra os olhos comovidos,
Como remos nos flancos coloridos
Da vaga onde navega a embarcação.
Leal e simples, saiba desvendar
Mistérios que é preciso descobrir:
O gesto natural de semear,
E a fome de colher e mastigar
O fruto que do gesto há-de sair.
Nada queira distante da razão,
Por saber que estiola o que não tem
Sol a jorros a dar-lhe a projeção
Na rasa lei do chão
Donde a raiz lhe vem.
Veja passar o vento
Carregado de sonhos e poeira...
Veja-o passar, atento
À beleza do próprio movimento...
Entenda num segundo a vida inteira!
E siga como alegre quiromante
Que mesmo no ludíbrio se procura.
Romeu viúvo que perdeu a amante
E lhe fica constante,
Até que a vai amar na sepultura.
*
E agora assino e selo o testamento.
Leve-me o barco, e fique o barlavento
Esta bruma de mim.
E que o farol, à noite, quando alguém vier,
Ilumine o que eu digo, e o deixe ler
Até ao fim.
Berlengas, 6 de Julho de 1947
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POEMAS NOS DIÁRIOS DE MIGUEL TORGA
BUCÓLICA
A tarde, doce como um fruto, cai,
De madura, no chão.
Venha alguém apanhar
A Vida!
Ou já não há quem saiba desejar
A maçã proibida?
Coimbra, 1 de Junho de 1947
POESIA E ARTE
POEMAS NOS DIÁRIOS DE MIGUEL TORGA
POEMA
Foi um poema casto que eu pedi
à minha musa.
Um poema com bibes e meninas,
e ternura no meio.
Mas quando a imagem veio,
a menina mais velha namorava,
e as outras, ao lado, aprendiam
a institiva lição...
- Minha Musa, o poema?
- Este é o mesmo poema,
numa outra versão.
Coimbra, 12 de Maio de 1947
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POEMAS NOS DIÁRIOS DE MIGUEL TORGA
IN PULVEREM REVERTERIS
Quatro gaivotas sobre a maré cheia:
Oito asas abertas.
Mágica, a sombra corre pela areia,
A roçar penas já no céu libertas.
Duas asas no chão da maré vasa:
Um sonho que andou alto e que desceu.
Uma brancura que apodrece em casa,
Fiel à condição em que nasceu.
Nazaré, 21 de Abril de 1947
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POEMAS NOS DIÁRIOS DE MIGUEL TORGA
LITANIA
S. Salvador do Mundo... de granito:
Que salvaste, afinal?
Ossos e ossos deste velho mito
Que, sem terra, se chama Portugal.
Nós nas giestas pedem-te, devotos,
Carne de alcova, húmus de semente.
E são fragas que dás, beijos remotos
Num corpo que no céu há-de ser quente.
S. Salvador do Mundo... português:
Temos rezado tanto,
E dás-nos este monte, esta aridez
Feita pela erosão do nosso pranto!
S. Salvador do Mundo, Pesqueira, 8 de Abril de 1947