Desencontro(s) - Cena 6:- Francisco de Magalhães Pizarro verus Francisco da Silveira
FRANCISCO DE MAGALHÃES PIZARRO VERSUS FRANCISCO DA SILVEIRA
(Ou do «herói» versus o «traidor», ou «cagão»)
Já há uns meses que tio Nona não aparecia por Santa Isabel, na casa de sua irmã mais velha, e usufruir daquela linda paisagem, que ele tanto gosto, vista do terraço de casa, e que se tem para a Régua e seus arredores.
Nos contatos esporádicos, via telemóvel, que tenho com ele, vejo-o muito entusiasmado com as suas caminhadas, agora mais para os lados da fronteira entre Chaves e Verín. Diz-me que são caminhadas de preparação para o Caminho Inglês de Santiago, o último dos principais Caminhos de Santiago que lhe falta fazer. Mas, cá para mim, aquilo já é um vício.
Telefonou-me a 23 de Agosto passado a avisar-me para aparecer por Santa Isabel no dia a seguir, dizendo-me que, com mais dois amigos, virando agora de agulhas para sul, ia fazer uma caminhada por aquilo a que apelidou de «Por terras de afeto do escritor e médico João de Araújo Correia». O traçado já estava, mais ou menos, delineado: Covelinhas, Galafura, Lugar da Estrada, Vila Seca de Poiares, Poiares, Canelas do Douro, fazendo uma incursão às ruínas da «villa» romana do Alto da Fonte do Milho e, depois descendo, regressar a Covelinhas.
Pedia-me para que lhe obtivesse o maior número de informação possível sobre cada uma das localidades e lugares por onde íamos passar, embora me fosse adiantando que já tinha feito alguma pesquisa para que nada se lhe escapasse. Tio Nona sempre foi muito meticuloso e organizado. E continua sendo. A páginas tantas, perguntou-me:
- Olha lá, o General Silveira, o tal das Invasões Francesas, não é também natural de Canelas do Douro tal como o nosso João de Araújo Correia? A família ainda tem por lá terras e haveres?
Fiquei de me informar para lhe satisfazer a curiosidade.
Na noite do dia 24 de Agosto, tal como combinado, lá apareci em Santa Isabel. Como sempre a tia Liu, já um pouco acabadita, não só pelo peso dos anos mas também pelo mal de que padece, que infelizmente tem suportado estoicamente, recebeu-me com aquele ar de felicidade, como a lembrar os velhos dias de outrora em que aquela casa se enchia de convivas e ficava repleta de alegria.
A maior parte dos dias de Agosto deste ano correram tórridos. E aquele dia 24 não foi exceção. O que nos salvava é que, metido o sol, aquele terraço da casa com aquelas espetaculares vistas, era o lugar ideal não só para descanso como para contemplação, charlas, tertúlias, confidências, enfim, conversas, em que, algumas delas, acaba(va)m em acesa discussão(ões). Contudo, por mais incrível que pareça, tudo na maior paz. Os durienses são assim: tanto brigam, berram e se zangam como tão depressa os vemos agarrados, sentidos, aos braços uns dos outros! A terra assim os fez…
Ora, sem ter qualquer vontade de polemizar, nem tão pouco, de me arreliar, o certo é que acabei por entrar numa conversa – que não passou mais que um desabafo, dado o tio Nona apenas me ouvir, paciente e impavidamente – acesa acerca de Canelas do Douro e do seu filho da terra, General Silveira. Queria dar ao tio toda a informação que me havia solicitado sobre as localidades referidas e, como bom aluno que me prezo de ter sido, mantendo ainda hoje essas qualidades, procurei recolher tudo para lhe dar.
Através da pesquisa que fiz no Google, acabei por dar com um blog, que dá pelo nome “CHAVES”, de um tal sujeito, meu amigo, Fernando DC Ribeiro e que, num dos posts, falava sobre o General Silveira. Como se sabe, o General Silveira, como militar, por causa das Segundas Invasões Francesas em Portugal, está muito ligado a Chaves. Tanto assim que, as suas gentes, a uma das Praças ou Jardins mais emblemáticos da cidade que, no dia-a-dia, o/a apelidam «das Freiras», por ali ter existido um convento de freiras, transformado depois em Liceu e agora Escola Secundária, a batizaram oficialmente como Praça General Silveira. E, muito recentemente, em 2009, em frente ao Forte de São Francisco, implantaram, por ocasião das comemorações do bicentenário da Invasões Francesas em Portugal, uma escultura e um painel-mural alusivos ao evento, com o oficial de cavalaria Silveira, em pose, em cima da sua montada.
Por isso foi com verdadeiro espanto e, porque não dizê-lo, alguma indignação, quando, li o post daquele blog, de 18 de Março de 2009, com o título «O muro da vergonha do General Silveira», sito no sítio da internet http://chaves.sapo.pt/370327html.
Quem ler atentamente aquele texto dará conta de que o autor começa por afirmar que é injusto que tal personalidade (a do General Silveira) tenha uma praça com o seu nome em Chaves e, agora, uma escultura, que lhe chama «boneco», em frente ao Forte de São Francisco, acompanhada de um painel-mural, como disse, alusivo às Segundas Invasões Napoleónicas em terras flavienses.
Fundamenta a sua posição o ter aprendido no Liceu de Chaves, edifício, entre outros, que delimita aquela praça, que a história tem sempre várias versões. E, com base neste postulado, apresenta a sua. Sem indicação das fontes; sem falar da autenticidade das mesmas e, quando, por ventura, contraditórias, apresentar o seu confronto para daí se poder, fundamentadamente, extrair uma ou várias conclusões, se porventura possíveis…
Não sei quem foi o(a) seu(sua) professor(a) de História, mas, se tal é como ele diz, o(a) mesmo(a) também não fica muito bem na fita. Ou então o «menino», na altura bem precisava de um bom «puxão de orelhas», por manifesta cabulice. Porque naquela altura tais procedimentos eram bem tolerados, ninguém levava a mal e a maioria dos pais até agradecia… É certo de que se tratava de uma pedagogia, um tanto ou quanto, pouco «ortodoxa» para os dias de hoje em que ao aluno quase se lhe não pode tocar, por manifesta violência e agressão física, criando-se, desta feita, e muitas vezes, um clima na sala de aula em que, agora ao contrário, o(a) aluno(a) quase pode fazer tudo. Oh tempus, oh mores!
Mas continuando. Para o Fernando DC Ribeiro, «o Silveira» - é assim como lhe chama -, que de grande até tinha muito pouco, ficou muito mal na fotografia da época para o povo de Chaves. E justifica o seu juízo de valor pela circunstância de, ao ver as tropas francesas, reconhecer que era impossível opor-se-lhe à sua marcha sobre Chaves, mandando, assim, retirar as nossas tropas do posto de observação de Outeiro Seco, mantendo embora o tenente-coronel Pizarro em Vilarelho da Raia, e retirando-se ele para o Alto de Santa Bárbara, em Ventuzelos, São Pedro de Agostém, porque «tremeram-lhe os tins-tins». Para este autor, e pela parte portuguesa, mesmo tendo em conta a desproporcionalidade das forças no terreno; a sua fraca preparação; o equipamento obsoleto e as infraestruturas militares, como os dois fortes, muito degradados para aguentarem com alguma consistência uma ofensiva, “«o Silveira» foi um cobarde ao não fazer frente ao inimigo”.
Foi inútil a Fernando DC Ribeiro ter alguém na família com conhecimentos de tática militar !... Porventura não diria tantos dislates, se tivesse mais em conta aquele ditado que reza: «não vá o sapateiro além do chinelo». Porque também não estou a ver o «nosso homem» com vocação para santo e que, à força de amar tão fervorosamente a sua terra, preferia que morressem «gloriosamente» a serem tomada pelo inimigo!...
Felizmente que não pensamos todos da mesma maneira e, naqueles tempos tão conturbados, política e socialmente, com a Corte no Brasil, com uma tropa totalmente desorganizada, e entregues ao comando militar supremo de generais ingleses, a preocupação do tal «Silveira», mantendo, obviamente, o grande objetivo de derrotar o inimigo, foi, por todos estes fatos, poupar forças e proteger os civis – as populações flavienses – da fúria assassina da tropas francesas. Não se armando num D. Quixote qualquer!
Que pena, na altura, o conto infantil de D. Caio, com o dito do alfaiate «eu cá mato sete de uma vez» não estivesse em moda! Possivelmente, então, as criticas que hoje alguns flavienses fazem ao General Silveira tivessem algum cabimento.
É, assim, com base nas suas teses, que Fernando DC Ribeiro começa por tecer loas ao seu verdadeiro «herói» - o tenente-coronel Pizarro que, à revelia das ordens do seu chefe militar “adere à causa do seu povo flaviense, ficando a comandar as tropas que restavam para defesa de Chaves”.
No final do seu post, Fernando DC Ribeiro pergunta: ”Que é feito da justa homenagem aos flavienses e ao tenente-coronel de Infantaria 12, Francisco Homem de Magalhães Pizarro, que, sozinhos, e quase sem armas, fizeram apenas com a sua valentia frente aos franceses!?”
E venceram?
Como se sabe, a história conta outro desfecho!...
Não tenho pessoalmente nada contra o então tenente-coronel de Infantaria 12, Francisco Homem de Magalhães Pizarro. Apenas constato duas coisas: a primeira, como militar desobedeceu a uma ordem do seu superior; a segunda, a sua atitude só pode ser entendida no contexto social extremamente complicado da época, em que imperava a falta de ordem, a lassidão e constantes convulsões. O tenente-coronel Pizarro, sendo natural de uma aldeia do concelho de Chaves (na circunstância Bóbeda, da freguesia de São Pedro de Agostém), deixou-se levar mais pela emoção, acirrada pela populaça, do que pela obediência e racionalidade e sangue-frio que um militar, com a sua patente, nestas ocasiões e num campo de guerra, deveria ter.
Estou, assim, mais de acordo com o General Augusto César Ribeiro de Carvalho quando, num artigo que fala sobre «A Defesa de Chaves em 1809», conclui, a propósito do julgamento a que foi sujeito o militar Francisco Homem de Magalhães Pizarro por ter desobedecido às ordens do seu superior:
“A leitura da sentença que acabamos de transcrever, agora que já vão passados tantos anos sobre os factos a que ela se refere, podendo portanto ser desapaixonadamente apreciados, dá a impressão de que o conselho de guerra, quer pelos antecedentes militares, na verdade honrosos do tenente-coronel Pizarro, quer por outras circunstâncias que só os coevos poderiam conhecer se achava benevolentemente inclinado a favor do acusado e mal impressionado com a severa acusação do general Silveira.
Evidentemente, este, achando-se o inimigo já em território português e a poucos quilómetros da praça que todos julgavam indefensável, não podia nem devia comprometer a segurança das tropas que comandava demorando-se em Chaves, com resultado incerto, a dominar e submeter a populaça amotinada e as tropas insubordinadas. O dever do tenente-coronel Pizarro era segui-lo, em vez de fazer causa comum com os que se achavam em rebeldia contra o legítimo chefe.
A sentença poderá, pois, ter sido juridicamente bem fundamentada, mas sob o ponto de vista disciplinar, achando-se o país em estado de guerra, não pode deixar de considerar-se pouco conforme com as conveniências militares.
Confirmando-a, o marechal Beresford, tão severamente rigoroso em questões de disciplina, mostrou mais uma vez a sua má disposição contra o general Silveira de cujos talentos militares foi sempre muito cioso” (Revista Aquae Flaviae, nº 39, Janeiro de 2009 – As Guerras Peninsulares II, páginas 101 e 102).
Mas porque a versão do General Ribeiro de Carvalho, Ilustre Flaviense para o nosso Fernando DC Ribeiro pode estar eivada de uma opinião distorcida e ser errónea quanto aos fatos que aqui nos interessam, tal como Francisco Teixeira Homem, neto de Francisco de Barros Cabral Teixeira Homem, da Casa de Samaiões, (e que, segundo dizem, em Samaiões poucas vezes pôs os pés) que, quando se refere à obra daquele General «Chaves Antiga», diz tratar-se de “uma obra desconexa, incompleta, com lacunas imperdoáveis eivada de erros e crivada de afirmações históricas menos verdadeiras, apesar de, em grande parte, copiadas dos trabalhos de Argote, Santiago, Guerra, Leite de Vasconcelos, Viterbo, Fernão Lopes, Souza, Conde de Ericeira, Pinheiro Chagas e Cohen. (…) faltando bibliografia quase em absoluto, obrigando-nos a crer (…) e por ai adiante”, conforme refere daquilo que leu das críticas que seu avô fez aquela obra no jornal Era Nova, dos anos 30 do século passado (ver comentário no sitio da internet – http://chaves.blogs.sapo.pt/318881.html), à cautela, fui à procura de outros autores, com porventura outras fontes, para não cair nos mesmos erros em que Fernando DC Ribeiro caiu.
E, compulsando a Revista Aquae Flaviae, nº 42, de Junho de 2010, dou conta de um artigo com o título «A Invasão de Soult e a Reconquista de Chaves aos Franceses – Uma análise operacional», do autor Abílio Pires Lousada, tenente-coronel do Exército, Mestre em Estratégia e Pós-Graduado em História Militar, sendo professor de História Militar do Instituto de Estudos Superiores Militares. Este especialista em História Militar, a páginas 59 e 60 daquele referida revista, diz:
“Ao retirar para Chaves, talvez Silveira pensasse «entrincheirar-se» na vila, barrando assim o itinerário francês na sua invasão em direcção ao Porto. Mas, se o chegou a pensar, rapidamente a ideia foi abandonada. As fortalezas não ofereciam condições para uma defesa sustentada, as peças de artilharia de sítio eram insuficientes e militares capazes de as guarnecerem também não abundavam. Ao invés sobrava o ânimo exaltado das massas populares que, à medida que tomavam conhecimento do desenrolar dos acontecimentos, afluíam a Chaves bramando «morte aos jacobinos». Mas, do mesmo modo de afrontar Soult na várzea constituía um erro táctico, combatê-lo a partir das muralhas da vila representava um suicídio. Conhecedor do comportamento francês perante a resistência portuguesa, Silveira percebeu que o melhor era os residentes manterem uma atitude passiva e os militares abandonarem a vila, para evitar chacinas. E foi esse o conselho que passou aos seus conterrâneos, na pessoa do governador, Coronel João de Sousa Silveira Magalhães. Enquanto este compreendeu a gravidade da situação, os populares apuparam o Brigadeiro de traidor”.
No calor desta minha exposição, e no manuseamento das provas documentais que ia apresentando ao tio Nona, este, a certa altura, com a maior das calmas – e porque tudo quanto lhe estava a dizer poe ele já há muito havia sido assimilado, diz-me:
- Reina uma certa tendência provinciana entre nós, transmontanos e alto durienses, de dizemos mal uns dos outros. Os de Chaves não podem ver os de Vila Real e os da Régua, e vice-versa. Cada qual quer ser o melhor e tudo fazem para deitar abaixo o outro. Ora, todos somos poucos para criarmos um outro Trás-os-Montes (e Alto Douro). No meio desta espécie de «guerrilhas», entre o norte e o sul, todos ficamos a perder, vencendo, depois e muitas vezes, os oportunistas, portadores de uma qualquer posição. Não sabemos apreciar e, consequentemente, cultivar a nossa história e os nossos maiores, obviamente sempre de uma forma crítica e fundamentada. Hás muita gente que se julga como os maiores, os reis deste reino. Estas lutas, que não são de agora, a todos nos empobreceu e empobrece. Vivemos, assim, num reino cujo rei, há muito tempo, deixou de ter coroa. Porque a verdadeira realeza constrói-se com o esforço comum, de todos. Sem querelas inúteis. Com uma visão de futuro. E uma vontade firme de mudança, construindo, na diferença, e em unidade, a nossa mais-valia para a construção de um outro Trás-os-Montes. Enquanto todos quisermos a mesma «vaca», todos ficaremos a perder. Mas outros lucrarão connosco! Lembras-te daquela parábola que vem no Evangelho a propósito dos irmãos e dos vimes? É um bom exemplo a seguir…
(Augusto Santos) Zassu