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zassu

27
Out12

Encontro(s) - Cena 5:- : No rescaldo do Congresso Internacional de Animação Sociocultural - Intervenção e Educação Comunitária: Democracia, Cidadania e Participação

 

Desde quinta à tarde e até hoje ao fim do dia estivemos em Ponte do Lima no lindo palco do Teatro Diogo Bernardes.

 

Ali se realizou mais um evento. Desta feita o Congresso Internacional de Animação Sociocultural sob o lema "Intervenção e Educação Comunitária: Democracia, Cidadania e Participação". Uma iniciativa que tem por detrás dois "carolas" da Animação Sociocultural em Portugal - Marcelino de Sousa Lopes e Dantas Lima.

 

Foi, graças a eles, que este "bicho" não só me entrou como me entranhou.

 

E que útil e profícuo foi - e me tem sido - para o aprofundamento da minha área de predilecção e eleição - o desenvolvimento turístico!

 

Por isso, fiz questão de estar presente. E também de dar o meu contributo.

 

Para além da comunicação que postei no post anterior deste blog, partilhada na página do Facebook de António Souza Silva, sob a designação "Apresentação Espaço público, cidadania e modernidade", tive a honra de moderar, hoje à tarde, a III Mesa Redonda com o título "Cidadania: Modernidade e pós-modernidade".

 

Nestes tempos de crise, de medos, depressivos, é necessário vozes que nos façam crer que outro mundo é possível. Que nos dê a esperança e nos faça acreditar num outro futuro melhor, mais democrático e com maior e mais eficaz participação cidadã.

 

Aqui vos deixo as palavras iniciais, por mim proferidas, aquando da abertura daquela Mesa Redonda.

 

"Que mundo, que sociedade é esta em que hoje vivemos?

 

Sabemos quais as consequências que a modernidade trouxe para a humanidade.

 

Sabemos também porque, em muitos aspectos, aquele projecto resvalou.

 

Mas, em que consiste agora a pós-modernidade, ou no dizer de alguns, a condição pós-moderna?

 

Será que o primado da política, da democracia e da cidadania, na sociedade, está cedendo passo ao mercado e ao capital internacional financeiro?

 

Será que assistimos, de uma vez por todas, hoje em dia, ao fim das grandes narrativas e que outra coisa não nos resta senão uma sociedade fragmentada, policontextual, heterárquica, de estruturas fluídas, líquidas, invisíveis e intransparentes, pairando, neste neste imenso mar de diferentes identidades, o náufrago narciso, portador de medos e sem projecto(s) de futuro e esperança?

 

Ou será que estamos no estertor da última fase do capitalismo (dito financeiro) e que esta crise por que passamos denuncia, agora sim, um pós, um princípio ou começo de uma nova era?

 

Com diferentes abordagens e com diferentes enfoques, são estes, em síntese, os grandes temas e preocupações desta III Mesa Redonda sob a designação "Cidadania: Modernidade e pós-modernidade".

 

Aqui se apela à necessidade de se reinventar ou do renascer da (nova) democracia.

 

Aqui se reivindica o primado da política e da educação na construção de espaços, ditos públicos, onde o (novo) cidadão, do século XXI, reconstrua a sua (nova) polis.

 

Num contexto e num processo complexo e exigente. E em que todos somos poucos para a construir, a erguer.

 

Contextualizando os nossos medos. Em projectos de esperança, alicerçados num efectivo conhecimento da(s) sociedade(s) e comunidade(s) em que nos situamos e vivemos.

 

Valorizando as identidades. Trabalhando com as diferenças".

 

 

(Teatro Diogo Bernardes - Ponte de Lima)
19
Out12

Encontro(s) - Cena 4:- Espaço público, Cidadania e Modernidade: Enquadramento e Desafios

 

 

Espaço Público, Cidadania e Modernidade: Enquadramento e Desafios

 

                                                                                                          

Introdução

 

 

Venho a este Congresso com o nome pomposo de “Investigador”. Ora, se, não sou especialista de coisa alguma, por outro lado, já investigo pouco. Move-me, simplesmente, a curiosidade por tudo quanto à minha volta se passa. E, neste sentido, procuro compreender e, na medida do possível, interpretar, a realidade que me cerca, através daquilo que é costume designar-se por “sinais dos tempos”. Encontrando pontos de referência que elucidem o meu caminhar, na sociedade em que me é dado viver.

 

Foi-me proposto falar, nesta III Mesa Redonda, com a designação de “Cidadania: modernidade e pós-modernidade”, o tema “Espaço público e cidadania”.

 

Contudo, se antes era difícil falar de conceitos como “espaço público” e “cidadania”, hoje em dia, esta tarefa ainda se apresenta mais complexa. Porque são conceitos polissémicos e que, nos seus momentos, ao longo da história, foram-se modificando, apresentando uma extraordinária dinâmica.

 

Daqui assim a opção que acabei por fazer (re)titulando a minha intervenção para “Espaço público, cidadania e modernidade: Enquadramento e desafios”. Numa tentativa de procurar encontrar, na sua dinâmica, os traços e desafios fundamentais que deverão nortear o exercício da cidadania no espaço público do mundo actual.

 

O que aqui se apresenta é uma humilde e simples reflexão, que, dada a escassez de tempo, se apresenta em tópicos, sem grandes preocupações académicas e, em certo sentido, de forma pouco exaustiva.

 

 

1.- Enquadramento – Mo(vi)mentos

 

 

A democracia (…)

É o ginásio da vida, não só para aqueles  já são excelentes,

 mas também para todos.  Nunca recuaremos,

 ainda que nunca alcancemos o sucesso”.

 

Walt Whitman (1888), Visões Democráticas

 

 

Cidadania provém do termo cidade. Cidade como espaço público reservado aqueles que dela participam.

 

Na Grécia clássica, cidadãos eram aqueles que integravam a polis, entendida esta como um espaço colectivo de construção da felicidade dos seus cidadãos.

 

Cidadania caracterizava, assim, o status necessário para que alguém se realizasse como ser político, que, na expressão de Aristóteles, é ser actor/partícipe desse espaço público.

 

Todos nós sabemos que, neste espaço grego, estavam excluídos escravos, estrangeiros e mulheres.

 

A ágora grega era “o espaço no qual a limitação da esfera pública urbana estava claramente decidida, onde se exercia a democracia directa, sendo o lugar, por excelência, da discussão e do debate de ideias entre os cidadãos” (Narciso, 2008: 60).

 

Na época romana, civis – cidadão – expressava a mesma realidade, embora com características diferentes.

 

O forum romano diferenciava-se da ágora na medida em que o espaço de discussão não era mais a praça pública, aberta, mas o espaço fechado dos edifícios, nos quais a penetração era mais restrita.

 

Assim, consideramos que a divisão do espaço em privado surgiu com os romanos, ao institucionalizaram a divisão entre público e privado.

 

Na concepção romana “(…) o comum é constitutivo da rua, dos espaços que não eram do domínio da apropriação privada” (Resende, 2005:131).

 

O conceito de cidadania na Idade Moderna, enquanto status de participação no espaço público, nasceu com os burgos, as cidades emergentes da época. O burgo era autónomo, possuidor de uma lógica “privatista” e “patrimonialista” dos feudos medievais (Corrêa, 2003).

 

Nesta etapa da cidadania, a sua concepção já leva um grande avanço, ao incluir todos os integrantes de uma nação, ao contrário de uma minoria privilegiada. Todos passam a usufruir formalmente do status da cidadania, porquanto, pela igualdade jurídica, todos são constituídos como sujeitos de direitos e deveres.

 

1.1.- O projecto/(as causas) da modernidade

 

Com o advento das Descobertas, das grandes navegações, já no século XVI, e mais particularmente com as Revoluções Burguesas do século XVIII e XIX, nomeadamente a Revolução Francesa e o surgimento do Capitalismo no século XX, dá-se início àquela que é convencional chamar-se a época moderna e modernidade.

 

Estes acontecimentos foram as razões fundadoras de um novo tipo de sociedade. Que já não se orientava por uma razão teocêntrica do mundo. E em que o tempo, de cíclico, passa a linear.

 

É na elaboração do método cartesiano, contudo, que a modernidade encontra a sua definição exemplar. Na elevação do Eu, enquanto «Eu penso», a princípio supremo, precedido pela definição de razão.

 

A modernidade, por outro lado, centrada nas ideias do Iluminismo, ao apontar para uma razão universalizante, apresentava uma concepção de progresso humano como promessa de redenção humanitária.

 

Segundo Harvey, citado por Chevitarese (2001: 4) “embora o termo «moderno» tenha uma história mais antiga, o que Habermas chama projecto de modernidade entrou em foco durante o século XVIII. Esse projecto equivalia a um extraordinário esforço intelectual dos pensadores iluministas «para desenvolver a ciência objectiva, a moralidade e as leis universais e a arte autónoma nos termos da própria lógica interna destas».

 

A possibilidade do domínio científico representava, ainda segundo Chevitarese, “o aceno de uma ambicionada segurança, que nos afastaria dos infortúnios ligados a imprevisibilidade do mundo natural (desde condições climáticas e de relevo, a doenças físicas e mentais): a natureza deveria submeter-se ao poder da Razão humana” (2001:4).

 

O conjunto de ideias e perspectivas que caracterizam a modernidade constituíram um grande sonho que, segundo Max Weber, citado por Harvey (1992) marca um processo crescente de «racionalização intelectualista», intimamente ligado ao progresso científico, e que a humanidade elaborou para si mesma, como um audacioso projecto da Razão como libertadora. “O Discurso iluminista de emancipação pela revolução, ou pelo saber, sustenta essa confiança na capacidade da Razão” (Harvey, 1992: 23).

 

Mas, a expectativa quanto aos frutos da ciência foi dolorosamente interrompida por eventos que marcaram profundamente a sociedade actual. Os principais deles foram, sem margem para dúvidas, a catástrofe da II Guerra Mundial e a insuportável lembrança de acontecimentos como Auschwitz, em nome do Terceiro Reich, o universo concentracionário estalinista ou o aniquilamento sofisticado em Hiroshima e Nagasaki. Para não falar no seu prolongamento, em múltiplas ameaças, levadas a cabo até hoje, representando sinais da destruição das esperanças que formavam a modernidade (Lyotrad, 1998).

 

1.2.- A crise e a dita pós-modernidade

 

As transformações ocorridas no século XX, como vimos, não só delapidaram o projecto iluminista e projecto de modernidade, como estabeleceram novos pilares e, até mesmo, uma nova fase histórica. Pensadores como Lyotard (1998) e Braudillard (1996) cognominaram de “pós-modernidade”.

 

Em 1979, Jean-François Lyotard publica La Condition Postmoderne, no qual apresenta o problema da legitimação do conhecimento na cultura contemporânea. Para Lyotard, o pós-moderno, enquanto condição da cultura nesta era [pós-industrial], caracteriza-se exactamente pela incredulidade perante o metadiscurso filosófico metafísico, com suas pretensões atemporais e universalizantes.

 

Ainda segundo Lyotard (1998), o descrédito em relação a tais narrativas de grande envergadura, de carácter totalizante, e a falência das pretensões de legitimação através delas estão no fundamento da condição pós-moderna. Considera-se “pós-moderna” a incredulidade em relação aos metarrelatos.

 

Guiddens (1997: 109) afirma que “a ciência perdeu boa parte da sua aura de autoridade que um dia possuiu. De certa forma, isso provavelmente é resultado da desilusão com os benefícios que, associados à tecnologia, ela alega ter trazido para a humanidade”.

 

Por seu lado, Harvey (1992: 23) afirma mesmo que “o projecto iluminista estava fadado a voltar-se contra si mesmo e transformar a busca de emancipação humana num sistema de opressão universal em nome da libertação humana”.

 

A partir, fundamentalmente, da década 50 do século passado, instalou-se, assim, o desencanto, com particular importância no sector da cultura, consequentemente, acompanhado da crise de conceitos como “Verdade”, “Razão”, “Legitimidade”, “Universalidade”, “Sujeito”, “Progresso”, etc.

 

E é, assim, neste contexto, que se fala de pós-modernidade, configurada como uma reacção cultural, consubstanciando uma enorme perda de confiança no potencial universal do projecto iluminista.

 

Em suma, a pós-modernidade é, pois, caracterizada como uma reacção da cultura ao modo como se desenvolveram historicamente os ideais da modernidade, associada à perda de optimismo e confiança no potencial universal do projecto moderno. Em especial, configura-se como uma rejeição à tentativa de colonização pela ciência das demais esferas culturais, o que vem acompanhado do clamor pela liberdade e heterogeneidade, que haviam sido suprimidas pela esperança de objectividade da Razão.

 

Há autores que perguntam se estamos, então, vivendo uma crise da modernidade, ou seria melhor concebê-la como uma crise na modernidade? Não haveria um equívoco em rejeitar por completo o projecto moderno, em função do que teria sido seu desastre inicial, isto é, o agigantamento dos sonhos iluministas e a tentativa de colonização pela ciência?

 

Se aceitarmos que está interditada a possibilidade de abrir mão totalmente de certos pressupostos básicos da modernidade, como a própria ideia de crítica, isto implica que, se há crise, é na modernidade.

 

De qualquer forma, se a pós-modernidade ainda não chegou, uma coisa é certa, o pós-modernismo proporcionou-nos um olhar mais atento para as “múltiplas formas de alteridade que emergem das diferenças de subjectividade, de género e de sexualidade, de raça, de classe, de configurações de sensibilidade temporal e de localizações e deslocamentos geográficos espaciais e temporais” (Harvey, 1992: 109).

 

Concordamos, em suma,  com aqueles que afirmam que não há, desta forma, um novo projecto civilizatório como vêem alguns adeptos da “pós-modernidade”, mas uma nova roupagem de dominação capitalista que utiliza várias estratégias, principalmente de cultura, na forma de mercadoria, e dos meios tecnológicos de comunicação para “cravar suas garras” em todos os lugares.

 

Ou então, conforme Bauman (2001) nos indica, a pós-modernidade é a modernidade que atinge a maioridade, a modernidade olhando-se à distância e não de dentro, fazendo um inventário completo de ganhos e perdas, psicanalizando-se, descobrindo as intenções que jamais explicitara, descobrindo que elas são mutuamente incongruentes e se cancelam.

 

É, assim, e com diferentes abordagens, que vários autores conferem à sociedade actual um carácter de “novidade”. Reconhecem que os componentes típicos do projecto moderno permanecem activos. O projecto moderno não se esgotou. Foi reorganizado sob uma nova cultura material. Anthony Giddens fala em “Alta Modernidade ou Modernidade Tardia”, Ulrich Beck fala em “Modernidade Reflexiva” ou em “Segunda Modernidade”, Gilles Lipovetsky fala em “Hipermodernidade”, Zygmunt Bauman fala em “Modernidade Líquida”, para citar alguns dos autores que mais se debruçaram sobre esta problemática.

 

Atentemo-nos agora sobre algumas destas temáticas amplamente abordadas.

 

1.2.1.- Da metáfora da “dissolução dos sólidos”à globalização e fragmentação da sociedade…

 

Juntamente com o Estado-nação, “outros sólidos” - aproveitando a metáfora de Bauman (2001) - constituídos no decurso da “modernidade sólida” –, a indústria fordista, as classes sociais, a família nuclear -, são cada vez mais fragmentados, liquefeitos e pulverizados. Em tempos de “modernidade líquida”, a própria noção de sociedade está sendo diluída.

 

Na modernidade líquida, não há lugar para funções de longa duração. O curto prazo substitui o longo prazo e faz do “momento presente” sua meta final. A transitoriedade substitui a perenidade. Tudo cai nas malhas da “presencialidade”, inquieta e assusta. Assiste-se à imposição do actual, do presente, do fútil, do frívolo, do culto ao desenvolvimento pessoal e do bem-estar material, expressão da ideologia individualista-hedonista. É a cultura do “agorismo”, na expressão de Stephen Bertman (1998).

 

Por outro lado, Touraine (2006) afirma que a globalização actual acarreta a fragmentação “daquilo que se chamava sociedade”, pois que possibilita a separação entre economia e sociedade, separação que traz em si a destruição da própria ideia de sociedade.

 

Observa que nos tipos anteriores de sociedade, o modo técnico de produção era inseparável de um modo social de produção. Por exemplo, na sociedade industrial, a organização do trabalho, tal como fora definida por Taylor e Ford, consistia em controlar e disciplinar a produção de modo a garantir o melhor desempenho possível por parte dos operários e o maior lucro possível para os empresários. Fundava-se sobre a fábrica ou o ateliê. E era nesses espaços que os operários se organizavam, reivindicavam e faziam negociações colectivas. Mas a era da informação é “puramente tecnológica”, o que significa que suas técnicas são socialmente neutras e não têm por si mesmas consequências sociais.

 

Ainda segundo Touraine (2006), poderíamos dizer que os espaços físicos de trabalho, localizados, “sólidos”, da era industrial, davam possibilidade para estruturar a sociedade. Nesses espaços compartilhavam-se visões de mundo, valores, angústias, etc. Na era da informação, as estruturas são constantemente “derretidas” para formar novas estruturas, num processo interminável.

 

Há, portanto, perda de espaço naquilo que diz respeito à convivência, às trocas, à construção de valores e acções colectivas.

 

Além disso, os fortes laços sociais, como a lealdade, deixaram de ser atraentes. Assim, o mundo do trabalho - a economia – não é mais um espaço de vivência colectiva, de “partilha” de valores e formas de vida.

 

Este mundo globalizado de coisas, pessoas, ideias, realizações, possibilidades e ilusões vem provocando rupturas, fragmentações, contradições, desencontros no âmbito nacional e mundial, envolvendo relações, processos e estruturas sociais, económicas, políticas e culturais de grande alcance. Fala-se mesmo em outra história e outra geografia: “novas formas de espaço e tempo, às vezes, límpidos e transparentes, outras vezes caleidoscópios e labirínticos” (Ianni, 2003: 220).

 

A globalização, sob os auspícios da electrónica, da informática, da robótica e da comunicação, invade todo o mundo, alterando a ordem social, económica, cultural e pessoal. Provoca rupturas, desníveis sociais, anacronismos, dissonâncias e tensões em toda parte.

 

Do ponto de vista da dinâmica social, algo completamente novo surge. O elemento integrador de coesão social desmoronou-se. O que era sólido derreteu-se (Bauman, 2001). As metanarrativas, de suporte pessoal, colectivo e estrutural, esvaíram-se.

 

1.2.2.- … e o aparecimento do homem narcísico

 

O homem económico do início do século XX, deu lugar ao homem psicológico, narcisista, dependente do espelho do outro, uma combinação de medo e dependência, vazio e depressão. Ganancioso e sem limites, vive em permanente estado de desejo, inquieto e insatisfeito, desesperançado.

 

Lipovetsky (2005) diz que uma das características do narcisismo seria o desejo incontrolável de se expressar sem se importar com o conteúdo da comunicação, o que resultaria numa comunicação sem finalidade e sem público, ou seja, a prioridade do acto de comunicação estaria posta sobre a natureza do comunicado.

 

O narcisismo celebra as aparências, condena a pessoa à solidão e destruição de si mesma. Giddens (2002: 159) reforça esta ideia afirmando que “não tendo envolvimento pleno com os outros, o narcisista depende de infusões contínuas de admiração e aprovação para estimularem um sentido incerto de auto-merecimento”. Ou como diz Lasch (1983: 85): “O narcisista cronicamente entediado, está sempre à procura de intimidade instantânea, de excitação emocional sem envolvimento... As más imagens que internaliza fazem dele alguém excessivamente preocupado com a saúde; a hipocondria lhe dá uma afinidade com a terapia e com grupos e movimentos terapêuticos”.

 

No universo narcisista o consumismo interpela as qualidades alienadas da vida social moderna, prometendo aquilo que o narcísico deseja: charme, beleza, sensualidade, popularidade – através do consumo de certos bens e serviços.

 

 

Como diz Lipovestsky (2005), a busca dos gozos privados suplantou a exigência de ostentação e de reconhecimento social. A época contemporânea vê afirmar-se um luxo de tipo inédito, emocional, experiencial, psicologizado, substituindo a primazia da teatralidade social pela das sensações íntimas.

 

Para Lasch (1983), o que caracteriza e engendra a sociedade narcísica é viver do presente e não mais em função do passado e do futuro. Perdeu-se o sentido da continuidade histórica e o sentimento de pertença a uma geração enraizada no passado, mas que se prolonga no futuro. O sentido histórico esvaiu-se com as grandes metanarrativas, valores e instituições.

 

1.2.3.-  A sociedade do consumo e enfoque das tecnologias da informação e comunicação

 

Muitos teóricos têm caracterizado ainda a cultura actual como sociedade de consumo, o que corresponde a aceitar este mundo “simulacional” das mercadorias como um dos eixos centrais para a compreensão da cultura. Se outrora o consumo era apenas uma consequência da produção de mercadorias, hoje é preciso produzir os consumidores, é preciso produzir a própria procura, e essa produção é infinitamente mais custosa do que a de mercadorias. O consumo de produtos e serviços está mergulhado no sonho que envolve cada signo-mercadoria.

 

Para certos autores, a inovação da tecnologia da informação é o ponto central para explicação das transformações que ocorreram no mundo, pois que, ao transformar nossa cultura material, penetra todas as esferas da actividade humana. Seria um processo historicamente novo porque somente nas últimas décadas do século XX se constituiu um sistema tecnológico – telecomunicações, sistemas de informação interactivos e transporte de alta velocidade em âmbito mundial, para pessoas e mercadorias – que tornou possível a globalização. (Castells, 2003a)

 

Este processo, de âmbito mundial, transforma a economia, a cultura e a sociedade e afecta a própria ideia de Estado-nação, construída no início da Idade Moderna. O Estado-nação tem vivido uma crise de legitimidade, tanto de suas instituições como de seus representantes, pois, confrontado com fluxos globais de capital, de produção, de comércio, de gestão, de informação, foi perdendo boa parte de seu poder. E é obrigado a viver o desafio de aprender a arte de navegar nos fluxos globais, em substituição do poder soberano que, como forma de governo, esteve na base de sua formação (Castells, 2003b).

 

1.2.4.- Considerações finais

 

Estamos vivendo uma nova etapa da modernização na qual características anunciadas na primeira modernidade são radicalizadas. A sociedade globalizada actual radicalizou e intensificou vários aspectos anunciados na modernidade e, paradoxalmente, “impingiu-lhe” novas características. Passa-se da era industrial para a chamada “era da informação ou do conhecimento”.

 

A dita pós-modernidade não abandona os imperativos de racionalidade crítica, pelo contrário, leva a crítica às mais profundas consequências, questionando os conceitos e pressupostos da modernidade.

 

E há boas “razões” para isso, que se revelam pela própria crise na cultura moderna. As “razões” da pós-modernidade são “razões” para que se reavaliem os “desacertos do projecto”, para que sejam revistas as noções mais fundamentais da modernidade, incluindo o próprio conceito de “Razão”. No fundo, são “razões” para que se mantenha a autonomia das esferas culturais, evitando reducionismos de qualquer espécie – seja do “cienticismo”, ou, na condição pós-moderna, do esteticismo.

 

Algo novo está surgindo, pois. Horizontes abertos pela globalização permeiam o presente e recriam o passado, instituindo uma nova inteligência das coisas, pessoas e acontecimentos. Um novo mundo vem sendo tecido a partir das tendências conflituantes da globalização e das identidades.

 

Nossa época é, assim, paradoxal. É uma época em que os contrários coabitam. Indiferença pura e apatia andam lado a lado com a agitação e mobilização. Participação como “recurso de gestão”, interessada, caminhando lado a lado com as possibilidades de “participação cidadã”. Despolitização por um lado, e endosso constante à democracia por outro.

 

 

2.- Constatações e Desafios

 

 

A política tem algum sentido?”

 

Hanna Arendt

 

O actual tédio pela política não resulta

 da quebra de interesse pelo bem público,

 mas de ter-se perdido a esperança

 de poder fazer alguma coisa com a política tradicional.

 

Daniel Innerarity, A Transformação da Política

 

 

 

2.1.- O primado da política

 

O mundo está a pedir que o reinterpretemos. Exige-nos que contemplemos a política de uma forma não convencional. Que abramos os olhos para uma realidade muito mais complexa.

 

Este mundo, que parece mais complexo e incompreensível que os anteriores, compreender é um bem escasso. Noutras épocas, interpretar a realidade era uma perda de tempo, uma distracção das exigências da praxis; agora é um modo de actuar sobre a realidade, uma verdadeira actividade (Innnerarity, 2005).

 

As sociedades multiculturais não sobressaem pela sua unidade, mas pela sua dispersão.

 

E encontramo-nos hoje precisamente perante um esgotamento da hierarquia como princípio ordenador das sociedades.

 

Em que política deve passar da hierarquia para a heterarquia, da autoridade directa para a conexão comunicativa, da posição central para a composição policêntrica, da heteronomia para a autonomia, da regulação unilateral para a implicação policontextual.

 

E terá de estar em condições de gerar o saber necessário – de ideias, instrumentos, procedimentos – para moderar uma sociedade de conhecimento que opera de maneira reticular e transnacional (Innerarity, 2005).

 

A tarefa fundamental da política e do estado na sociedade do conhecimento pós-capitalista e pós-territorial é a coordenação e mediação dos sistemas sociais tão complexos, experientes e dinâmicos que excluem um comando estatal autoritário.

 

As tarefas do estado modificaram-se decisivamente numa sociedade que não permite um governo directo, centralizado, hierárquico e autoritário, mas contextual, heterárquico e discursivo (Innerarity, 2005).

 

Temos, pois, de modificar em profundidade o nosso modo de conceber a política. Se a teoria clássica da política se preocupou com a ordem, a estabilidade, a integração e a planificação, hoje é mais necessário interessar-se pelo inverosímil, pelas diferenças e pelos processos dinâmicos. A política deve aprender a dar-se bem com um futuro que já não é objecto de adivinhação nem algo planificável, mas uma coisa fundamentalmente incerta que, apesar disso, temos de antecipar.

 

Segundo Innerarity (2011), vivemos num mundo sem épica ou, pelo menos, no qual as narrativas épicas perderam plausibilidade e capacidade de mobilizar. A política agora situou-se no espaço humano, demasiado humano, sem sublimidade, sem verticalidade, no qual nada está absolutamente protegido da crítica, da erosão do tempo ou da crescente complexidade social.

 

Não estamos perante a necessidade de reideologizar a política, mas de configurar projectos e decisões com base no reconhecimento de que dispomos de um saber limitado e falível. Se as ideologias fechadas pretendiam certezas absolutas, o nosso desafio consiste em estabelecer programas pós-ideológicos que sejam, ao mesmo tempo, normativos e conscientes da sua própria contingência (Innerarity, 2011).

 

O único consenso que tem alguma possibilidade de êxito é o reconhecimento da heterogeneidade dos desacordos” (Bauman, 2005: 306). A pretensão de transformar a política em responsável pela obtenção de um consenso geral que supere as distinções ideológicas e sistémicas já não é sustentável em sociedades policontextuais, que não se articulam de maneira centralista ou hierárquica.

 

Da política não se deve esperar nem a solução definitiva de todos os problemas nem a salvação das nossas almas, mas qualquer coisa muito mais modesta mas não menos decisiva do que o que proporcionam outras profissões muito honradas.

 

Na transição de uma sociedade heróica para uma que já o não é, torna-se necessário elaborar uma nova cultura política que ensine tanto a apreciar a política como a não lhe pedir o que ela não pode garantir (Innerarity, 2011).

 

Apesar de nunca ter estado tão limitada na sua margem de actuação, a política também nunca foi tão decisiva como hoje.

 

2.2.- A (nova) confiança no futuro/ os (novos) desafios

 

As sociedades modernas, que já não adquirem o seu conhecimento do futuro por meio de interpretação dos sonhos nem actuam vicariamente na figura de uma pessoa em que confluem visão e poder, têm de adquirir esse conhecimento colectivamente por meios dos correspondentes processos de investigação e deliberação colectiva. Como sociedades abertas, estão condenadas à aprendizagem colectiva. Não podem confiar que as coisas sejam resolvidas por outros ou aconteçam sem se fazer nada (Innerarity, 2011).

 

Entre as coisas que já não são o que eram salienta-se a ideia de um progresso linear, necessário, irreversível e contínuo, baseado na certeza de que nada é insuperável nem nada há que possa resistir à vontade de transformação. O esgotamento desta ideia moderna de progresso é uma característica fundamental do nosso tempo.

 

Uma vez que se deu este esvaziamento da ideia de progresso, que tipo de futuro produzimos na nossa sociedade?

 

Quais são as consequências políticas da crise da ideia de progresso? A política não é actualmente movida por projectos que suscitem a esperança colectiva nem por antevisões do futuro especialmente prometedoras. Não é por acaso que o desencanto em relação à política coincide com o momento em que o futuro se converteu numa categoria problemática.

 

Há actualmente um profundo pessimismo a respeito da capacidade humana de configurar seja o que for, e muito menos por meio da política. O novo fatalismo reflecte o desvanecimento da esperança política despertada pelas utopias liberais e socialistas, herdeiras de grandes narrativas progressistas das Luzes.

 

Esta perda de energia antecipatória manifesta-se no facto de que as nossas democracias carecem de projectos utópicos, de missões ou concepções de justiça, de horizontes globais. Os grandes visionários foram substituídos por políticos que gerem as inevitáveis constrições do presente. E onde melhor se revela esta redução de esperança é no facto de a política se mobilizar mais pela rejeição do que pelo projecto, mais pela desconfiança do que pela adesão.

 

Todavia, a crise de uma determinada concepção do progresso não deveria implicar a crise do progresso como tal.

 

O desaparecimento da segurança garantida pelo controlo ideológico sobre o progresso pode abrir caminho a um futuro mais surpreendente ou inovador do que aquele que costumamos imaginar, mais aleatório, acidental, imprevisível, até arriscado e perigoso. Esta indeterminação permitiria um novo protagonismo humano, que não agora baseado na crença do progresso automático.

 

Assim, teríamos de passar do futuro entendido como algo assegurado ao futuro entendido como algo aberto, frágil e em boa medida dependente da nossa liberdade, isto é, como um âmbito de responsabilidade. A crença no sentido da marcha da história produzia paternalismo e moralismo. Era um porvir sabido e planificado, que libertava os seres humanos do difícil dever de escolher e da consequente responsabilidade pessoal.

 

Agora o que faz falta são projectos elaborados com base numa imaginação do futuro desejável, embora esse futuro não possa já ser projectado com uma necessidade mecânica e tenha de ser mais imprevisível e controverso.

 

Em vez de se proclamar que «outro mundo é possível», mais vale imaginar outras maneiras de conceber e actuar sobre este mundo.

 

Temos, pois, de mudar este estado de coisas. Com visão e paixão. Porque a política sem visão perde-se na azáfama quotidiana e acabamos por chegar onde realmente não queríamos; mas, se lhe faltar paixão, a política mostra-se incapaz de fazer frente à fatal resistência aos factos, acomoda-se-lhes, fatalmente, sem chegar aonde se tinha proposto.

 

Atendendo à magnitude dos problemas que nos esperam e que exigem uma acção colectiva, nunca a política foi tão necessária. Se não pudermos resolver esses problemas por meio da política, não poderemos resolvê-los de nenhuma maneira.

 

O futuro já não é construído lutando contra os que defendem o passado, mas sim contra os que parecem ser pelo futuro mas que o defendem mal.

 

Devemos pugnar por uma política de optimismo e de esperança num tempo em que a confiança na configurabilidade do futuro se encontra debilitada. Porque, na esteira de Innerarity ((2011: 15) “do que necessitamos é de uma política que faça do futuro a sua tarefa fundamental, uma política empenhada em impedir que a acção se transforme em reacção sem significado e que o projecto se degrade no idealismo utópico”.

 

É a ausência de projecto que nos submete à tirania do presente. O movimento contemporâneo, a incessante adaptação à mudança que nos é exigida, é vivido segundo uma lógica da sobrevivência, não da esperança. À força de se explicar que «as grandes narrativas» morreram, o lugar delas foi ocupado pela defesa dos «direitos adquiridos». O vazio deixado pela imaginação do futuro foi preenchido pela preocupação do instante.E onde não se prepara o futuro a política limita-se a gerir o presente (Innerarity, 2011).

 

 

3.- A (nova) contextualização do espaço público e da cidadania

 

 

“(…) democracia (…)

É uma palavra grandiosa cuja história, suponho,

permanece por escrever, porque essa história ainda tem de ser encenada.

É, de algum modo, a irmã mais jovem doutra palavra grandiosa,

e assaz utilizada, Natureza, cuja história também se encontra ainda por escrever”. 

 

 Walt Whitman (1888), Visões Democráticas

 

 

Uma peculiaridade do mundo em que vivemos:

 a contradição entre o universal convite à participação

 num espaço público e a fragmentação dos discursos e dos interesses (…)”.

 

Daniel Inerarity, O Novo Espaço Público

 

 

Uma sociedade política é uma sociedade de actores, de cidadãos, que agem em conjunto, e não um simples agregado de indivíduos que vivem uns juntos dos outros e repartem entre si um bem que supõem comum.

 

A cidadania é uma noção complexa, que se define e constrói sempre em vários níveis, em quadros múltiplos, e articulados de forma diversa. Está ancorada em processos políticos contraditórios e complexos, em que a construção e o desafio das identidades e das políticas identitárias se torna premente.

 

A preocupação pelo espaço público, pelo comum, pelo mundo, está no cerne da acção política, que é sempre um combate contra “necessidades” económicas, as “forças” da ordem e os “fantasmas” colectivos.

 

O “público” seria então o conjunto de procedimentos mediante os quais são formuladas, discutidas e adoptadas as decisões políticas colectivas. O “público” caracteriza aquilo que é de interesse geral e apela para um espaço de acção em que todos os membros de uma comunidade política resolvem dialogalmente os assuntos que dizem respeito a toda a sociedade.

 

O conceito de «público» como coisa plural e inacabada, com diferenças internas e antagonismos, pode, em contrapartida, ser uma noção muito mais rica e respeitadora da complexidade das nossas sociedades.

 

Contudo, os públicos só existem em contextos concretos e bem definidos e a sua mobilização como públicos políticos exige todo um trabalho político, social e simbólico que os inscreva na tessitura das discussões públicas e lhes dê voz, que os faça falar e apontar perspectivas alternativas e desconstrutoras das hegemonias gramaticais sobre determinados temas ou problemas (Innerarity, 2010).

 

 O espaço público é um lugar onde os problemas são assinalados e interpretados, onde as tensões são experimentadas e o conflito se converte em debate, onde é encenada a problematização da vida social.

 

 Neste sentido, conceito de espaço público sintetiza, assim, o ideal de uma vida política presidida pelo diálogo e pela argumentação. Aquilo a que hoje chamamos espaço público, ou ágora, o lugar onde os cidadãos se encontravam para discutir os assuntos respeitantes ao governo da cidade.

 

 

Mas o espaço público – essa esfera de deliberação, mediante a qual os membros de uma sociedade produzissem uma realidade comum, para além da sua condição de consumidores, eleitores, crentes, peritos, etc., e em que se articula o comum e onde são tratadas as diferenças – não constitui uma realidade dada. É, ao invés, uma construção laboriosa, frágil e variável que exige um contínuo trabalho de representação e argumentação e cujos principais inimigos são a imediatez de uma política estratégica e a imediatez desestruturada dos espaços globais abstractos.

 

Mas, nos tempos que correm, o espaço público já não é o processo em que as opiniões se formam. Mas o lugar onde elas simplesmente se tornam públicas.

 

Onde essa despolitização e esse empobrecimento mais claramente se manifestam é no tipo de comunicação que atinge a opinião pública: uma comunicação trivializada e sem autênticos debates. Realiza-se nela um tipo de confrontação elementar em que o acontecimento está acima do argumento, o espectáculo acima do debate, a dramaturgia acima da comunicação, a imagem acima da palavra. A esfera pública fica reduzida a um conjunto de «espectáculos de aclamação».

 

É um tipo de comunicação em que os actores emitem as suas opiniões, só se citam a si próprios e não entram em sequências de interrogação e resposta. Quando muito, as interrogações são retóricas e as respostas são polémicas. Os discursos já não são feitos para discutir com um adversário nem para procurar convencê-lo: adquirem um carácter plebiscitário, de legitimação dos monólogos; os intervenientes reagem una aos outros, mas sem qualquer intenção de entender-se ou de convencer-se.

 

Não havendo interesse em converter as opiniões em tema de discussão pública, a sua discussão passa a ser supérflua, a sua publicação perde a função mediadora, as opiniões enquistam e a opinião pública é dissolvida na imediatez das sondagens.

 

O espaço público parece ter perdido a eficácia política que dele se esperava como lugar e procedimento para articular o convívio.

 

O público é simplesmente o cenário da tramitação das reclamações privadas.

 

A perda de sentido de um mundo comum, em que Hannah Arendt viu a origem dos totalitarismos, é hoje a explicação de uma série de fenómenos relacionados com uma desilusão que faz diminuir a força da nossa acção colectiva e cuja expressão mais visível é o desencanto pela política.

 

Mas, por outro lado, o espaço público já não é somente o lugar de comunicação de cada sociedade consigo própria mas também o lugar de uma comunicação entre sociedades diferentes umas das outras. Estas novas dificuldades parecem aconselhar uma investigação acerca da ideia do espaço público, da sua vitalidade normativa e da sua possível reformulação.

 

É na acção comum que se encontra a condição de uma cidadania política, que nos últimos anos tem gravitado abusivamente no plano jurídico, a ponto de reduzir o político a uma articulação dos direitos, ou no plano económico com base na maximização do interesse individual. Contra este empobrecimento tem vindo a advertir-nos o republicanismo em conformidade com uma ideia de cidadania segundo a qual os membros de uma sociedade não só têm direitos mas também deveres que vão mais longe que o mero respeito pelos direitos dos outros: um certo compromisso em relação aos interesses da sociedade no seu todo. O entrelaçamento da existência individual com as formas de vida colectiva obriga-nos a pensar um sujeito integrado na vida pública porque a realização humana é impensável fora do espaço comum.

 

A ideia de uma “democracia deliberativa” indica precisamente a conveniência de se entender a esfera política como um lugar de descobrimento dos interesses e não tanto como um cenário de mera negociação.

 

Em que, segundo Innerarity (2010), noções como “responsabilidade”, “governo cooperativo” e “cosmopolítica” (aqui na esteira de Bauman) devem ser tidas em conta.

 

Responsabilidade, que compreenda a complexidade do mundo em que vivemos e nos ajude a identificar uma espécie de bem comum operativo nos actuais processos políticos, pensado num horizonte que inclua uma certa antecipação futuro.

 

 Governo cooperativo, que apela a uma forma de entender o poder e a acção administrativa de uma forma radicalmente diferente.

 

Cosmopolítica, como uma nova forma de perspectivar a política concordante com os novos cenários globais, nos quais se adivinha uma comunidade que passa para fora das tradicionais delimitações e exige que tomemos a sério essa dimensão mundial do novo espaço público.

 

Há que passar das comunidades nacionais para os espaços da globalização, pensando em como deve ser a política para um mundo comum e de que modo a política pode continuar a fornecer a gramática dos bens comuns, de maneira que ela seja, nos novos cenários e em dimensões que ainda não conhecemos, o governo dos assuntos públicos.

 

Conclusão

 

A modernidade, ao fazer-nos acreditar na ideia de progresso social para a humanidade, intimamente ligado ao progresso científico e à razão, veio dar um novo folgo à cidadania, herdada da Grécia clássica, entendida como construção de espaço de felicidade para todos.

 

Sabemos, contudo, no que resvalou o projecto da modernidade. E como, a partir desta experiência, de sucessivos desastres patenteados ao logo do século XX, irrompeu a rejeição da tentativa de colonização pela ciência dos demais espaços culturais, levando ao surgimento daquilo que autores apelidam de uma sociedade dita “pós-moderna” – que os meios de comunicação e informação modernos propiciaram -, ou seja, uma sociedade fragmentada, heterárquica, global, policontextual, portadora de uma nova dinâmica, e cada vez mais complexa. Uma sociedade que levou ao aparecimento, cada vez mais acentuado, da individualidade e de uma cultura dita narcisista. Que vive sob as ordens do “presentismo” e do “agorismo”, e em que o futuro se nos apresenta apenas como portador de medos e não eivado de projecto(s) de esperança.

 

Temos de criar novos espaços públicos que incluam, necessariamente, um desvio de rota na lógica dos que defendem o desenvolvimento como crescimento indiscriminado e perverso dos recursos naturais. Porque somos natureza e, como tal, ou nos construímos solidariamente, ou nos tornamos agentes privilegiados de desintegração planetária pela implosão da esfera pública, vista como espaço vital de partilha humana.

 

Temos de reinventar uma ética inclusiva a partir da multiplicidade de experiências, cimentada pelo escopo comum de disseminar novos espaços de solidariedade, e não prescindindo de uma comunhão saudável com a natureza. Em que se encare seriamente uma educação ambiental abrangente e aberta, disposta a reconciliar a humanidade com o mundo em que vive, encontrando no pensamento ecológico um novo princípio ético, assumindo pretensões de universalidade.

 

Cabe, portanto, à cidadania, enquanto processo de construção de espaços públicos, formular um novo contrato social, baseado na responsabilidade, individual e colectiva, no governo cooperativo e na cosmopolítica, de cunho fortemente emancipatório, e tendo como princípios fundacionais a ecologia, a solidariedade participativa e a inclusão social.

 

Espaços públicos de vida digna que devem ser construídos paulatinamente por meio de frentes comuns de combatividade solidária, tendo como horizonte de sentido a partilha de espaços sociais de que os cidadãos necessitam para a realização colectiva de suas identidades e diferenças.

 

Se hoje assistimos a uma globalização elitista, em cujos processos as condições materiais de existência são crescentemente apropriadas pelos novos “cidadãos” do mundo, urge lutar politicamente por uma globalização inclusiva, em que desenvolvimento passe a significar mais qualidade de vida, maior partilha do bolo de bens e riquezas, que os agentes privilegiados do sistema de mercado se negam a socializar, em vez de uma acumulação de capital predominantemente privado, conquistado à custa da “descartabilidade” do ser humano-cidadão (Corrêa, 2003).

 

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