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zassu

25
Fev13

Encontro(s) - Cena 7:- Pedaços de memória...

 

 

PEDAÇOS DE MEMÓRIA...

 

Naquela tarde de 25 de Fevereiro, com um sol radiante como que a anunciar antecipadamente a primavera, naquele terraço debruçado sobre o rio Doiro que, mais ao fundo, corria a seus pés, três cadeiras de palhinha de encosto, colocadas junto à parede alba do escritório da casa, convidavam a confidências e desabafos.

 

O primeiro a sentar-se foi tio Nona. Costuma vir, frequentemente, a Santa Isabel, a casa de sua irmã Liu. Diz que vem para “carregar baterias” e visitar sua irmã mais velha, mas, cá para mim, não é só isso. A coisa é toda outra. O que ele vem fazer é matar saudades da paisagem ondeante do seu sempre querido e saudoso Doiro, à procura de aconchego do seu Marão, daquelas suas fragas que o viram nascer, cobertas de neve, num primeiro dia de um já longínquo ano 51. E, no silêncio do seu recolhimento e contemplação, encontrar conselho e lenitivo que aquela gigante, despida, calva e inóspita serra lhe dá para prosseguir com mais entusiasmo e vigor o seu dia-a-dia. Ele não o diz, mas eu, um dos seus sobrinhos predilectos, sinto-o.

 

A sua vinda hoje à terra duriense que, definitivamente, há 48 anos deixou para se fixar nas terras outrora mais fartas a norte – da Veiga de Chaves – tinha a ver com o festejar os anos do seu cunhado. António (Tâmara Júnior), meu primo, um outro sobrinho predilecto de Nona, acompanhou-o.

 

E foi assim, neste contexto, que os três, sentados naquelas três cadeiras, de verga, preguiceiras, iniciámos uma amena cavaqueira. Mas o protagonismo da conversa coube todo a tio Nona.

 

Levantando-se da preguiceira, dirigiu-se para uma ponta do enorme terraço da casa, donde melhor se avista o rio banhando a Régua, emoldurando aquele magnífico quadro presente aos nossos olhos. E, virando-se demoradamente para os lados do norte, contemplando aquele cenário feito de socalcos, onde a vinha e a oliveira são os seus inquilinos de eleição, sem se virar para nós – que lhe seguíamos atentamente a direcção do seu olhar, adivinhando-o nostálgico -, ouvimo-lo naquele enorme anfiteatro, como se estivéssemos a assistir a uma peça de teatro, em solilóquio. Começou por dizer:

 

- Chaves!... Só Deus sabe o quanto gosto daquela terra! 48 anos não são quarenta e oito dias. É quase uma vida inteira. Quando daqui parti, uma doce e meiga adolescente, por quem estava apaixonado, com seus olhos rasos de lágrimas, e num sentido beijo de despedida, bem me dizia: nunca mais voltas, António![Nona]. Com efeito, bem razão tinha aquela tão querida Nanda…

 

 

E, quando a cada passo, me lembro daquele doce amor adolescente,é como se um alfinete me picasse não só por aquela traição aquela meiga memória como ao meu Doiro que estava deixando para trás.

 

Mas ali assentei vida, embora andando entretanto por algumas partidas do nosso Portugal. Ali me nasceram os filhos. Ali fiz amigos. Ali me comprometi com aquela comunidade, que me acolheu, dando-lhe também o meu melhor como cidadão, na construção de uma sociedade mais desenvolvida, justa, equitativa e solidária. Ali repousam os restos daqueles que são a causa da minha existência e os do meu saudoso Lélé, teu pai, António. Ali continuo a viver naquela terra companheira e cúmplice, numa espécie de casamento, vivido de tantas peripécias e episódios de vida. Cheio de alegrias. Mas também com algumas tristezas.

 

Mas aquela não é a minha terra de paixão! Ao longo de 48 anos, o burel, o capote e o cajado jamais me moldaram a minha personalidade e modificaram o meu carácter. Eu sou filho dos geios e da enxada do trabalhador da vinha, a dias, labutando duro pelo parco pão de cada dia que, levado pelo sonho das serras que o cercavam e pela correnteza de um rio rebelde, deslumbrando-o, para se dirigir para outras paragens, nunca se esqueceu do naco seco do pão de broa e da tijela de papas de milho saídas do pote ao lume!

 

Decididamente, não sou pastor. Simplesmente um humilde jardineiro. Bem certeiras são as palavras de Torga quando, na sua obra ”Portugal”, e a propósito do seu Reino Maravilhoso, a páginas tantas, diz: «Nas margens de um rio de oiro, crucificado entre o calor do céu que de cima o bebe e a sede do leito que de baixo o seca, erguem-se os muros do milagre. Em íngremes socalcos, varandins que nenhum palácio aveza, crescem as cepas como manjericos às janelas». E, o mesmo autor, no capítulo da mesma obra “O Doiro”, arremata: «Ser nesse chão árido e hostil um novo criador de vida, dar aí uma resposta quotidiana à morte, transformar cada ravina em parapeito de esperança e cada bagada de suor em gota de doçura – eis o que o Titã ensina aos homens, e o que Zeus lhe não perdoa. Por isso, o seu perfil rebelde é o próprio perfil dos montes (…)». Esta é a essência, o verdadeiro carácter do homem duriense que tão bem Torga esculpe e que, desde a minha infância, jamais se apagou da minha memória.

 

Mas, se verdadeiramente quiserdes saber de quem vós sois verdadeiramente filhos, e conhecer a verdadeira vida dos vossos pais e avós, lede, principalmente, os maravilhosos contos e novelas de João de Araújo Correia e de Pina de Morais. Lede-os não só com o intuito de conhecerdes a(s) história(s) mas, principalmente, para descobrirdes a verdadeira alma duriense. 

 

Estou com Sant’Anna Dionísio quando, no seu livro “Alto Douro Ignoto”,  diz: «Olhando os vinhedos que recortam os flancos enormes até ao cimo, é difícil deixar de exclamar em silêncio:- ‘Quantas vidas!... sonhos… esforços… ilusões… heranças! acumuladas nesta obra grandiosa e anónima, ao mesmo tempo gigantesca e liliputiana, que se chama o vale vinhateiro do Douro!’».

 

E, a este propósito, gostaria de vos contar a história desta casa.

 

O passar dos anos, e as intempéries da vida, tornaram-na decrépita. Tem, apesar de tudo, um passado nobre, digno de ser contado. Contudo, hoje não é o momento apropriado para o relatar. O dia que festejamos requer que demos mais importância ao nosso anfitrião e festejado. Mas sempre vos direi que, nesta casa, se respiga um verdadeiro espírito de lugar. Possui uma alma. Na figura de um homem a que todos os seus familiares lhe chamavam carinhosamente o «Padrinho». Porque de facto padrinho de minha mãe, da minha irmã mais velha, Liu, - a quem na adoptou de facto como filha -, depois das sua filhas, enfim, no final de contas, de todos da família.

 

 

Padrinho, pai grande, ao matar a fome de sua sobrinha e afilhada, minha mãe, quando não havia um cêntimo no bolso e a fome apertava; padrinho, pai grande, ao socorrer a sua sobrinha e afilhada, minha mãe, nos momentos difíceis em que as doenças matavam mesmo quando não havia recursos, porque praticamente nulos, para comprar remédios para as debelar.

 
Anticlerical, mas orgulhoso do filhos de sua sobrinha e afilhada predilecta,
 

 

em particular do padre,

 

recebendo-os de braços abertos em sua casa, com os olhos e o coração alegres, reflexo de uma alma magnânima. Anticlerical, mas compartindo o seu vinho, com as peças de caça do Padre Avelino, caçador, amigo de Miguel Torga, oferecendo-lhe a sua hospitalidade. Anticlerical, avesso a ostentações beateiras, mas possuidor de uma fé, que só a ele dizia respeito, e com um enorme respeito pelas «suas alminhas» a quem «reverenciava», na curva da estrada à saída da sua propriedade, sempre que por elas passava, tirando disfarçadamente o chapéu da cabeça, fingindo que o limpava, para seu «chauffeur» não se aperceber da sua verdadeira intenção. Anticlerical, conhecedor profundo da hipocrisia e vida mundana da clerezia portuense, fazendo-me sentar com ele à mesa do Hotel Peninsular, onde habitualmente se alojava quando ia em serviço do Instituto do Vinho do Porto ou tratar de algum seu negócio, e a quem, durante a refeição, como verdadeiro pai, me dava conselhos para me orientar naquele mundo em que vivia, no qual, ele de antemão, sabia que não tinha qualquer vocação para padre, quando estudava teologia no Seminário Maior do Porto.

 

Republicano e anti-salazarista, mas sabendo distinguir quem serve um regime por necessidade ou o defende por convicção.

 

Duro como homem de negócios, mas derretendo-se todo a qualquer pedido ou capricho da sua filha-afilhada, minha irmã Liu.

 

Padrinho-avô afectuoso e extremoso, deixando-nos a todos confusos e perplexos quando observávamos como um homem daqueles punha tanta paciência infinda, carinho e amor no trato e nas travessuras das suas netas-afilhadas.

 
 

Morreu a 10 de Janeiro de 1970. Mas, sempre que entro nesta casa, vem-me sempre à lembrança a figura tutelar do «Padrinho».

 

Numa região, como o Douro, tão característica como o rio que a atravessa, turbulento e revolto, ele soube, com perseverança, austeridade e autoridade, que emanava de uma vontade indómita, atravessar todos os altos e baixos da vida, levando sempre a bom porto os destinos desta casa.

 

Vivemos hoje tempos muito conturbados, difíceis. Olho à minha frente e vejo uma terra, transformada em jardim, graças ao sofrimento da enorme maioria das mulheres e homens durienses, ao longo de dezenas, centenas de anos. Num trabalho duro. Sofrido. Perseverante. Persistente. Apesar das muitas injustiças e iniquidades.

 

Mas sou optimista. Acredito que, com figuras tutelares com o «Padrinho», e de tantas outras que, apesar de tudo, e felizmente, o Douro teve, e continua a ter, um novo futuro, mais radiante e risonho, poderá ser possível nas nossas casas, na nossa terra duriense.

 
Com trabalho duro, é certo. Muitas vezes sofrido, com certeza. Com perseverança. Com persistência. Mas sem injustiças e iniquidades! Abraçando e perseguindo um modelo de desenvolvimento para a região que faça justiça às mulheres e aos homens que, sempre, ao longo de dezenas, centenas de anos, tão bem souberam tratar deste nosso jardim que aqui, à vossa frente, vedes uma pequena amostra.
 
 
 
 

Dando-lhes qualidade de vida pela qual sempre aspiraram. Não desistindo deste terrunho sagrado, enxameando-o de vida, com gente. Porque só as pessoas é que fazem nobre a alma desta paisagem. Com todos aqueles que nela queiram viver, tornando-a efectivamente sua, nossa. Porque só assim faz sentido ser Património Mundial, genuinamente duriense, e do qual justamente disso nos orgulharmos. Porque estamos aqui para reivindicar que foi por todos nós criado, valendo, por isso, a pena aqui viver, mesmo à custa de enormes sacrifícios!

 

Entretanto, a nossa frente, o sol caminhava a passos largos para o seu ocaso.

 

O pequeno Edu, assomando à porta de acesso ao terraço, chamava:

 

- Ti Nona, António, Augusto, o vovô já chegou! Venham para dentro. O comer vai já prá mesa.

 

E, após mais um dos desabafos a que tio Nona, a cada passo, nos presenteia, a modos de ensinamento, lá fomos para dentro festejar os anos do anfitrião da casa.

 

 

(Augusto Santos) Zassu

 

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