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zassu

27
Fev14

Poesia e Fotografia 17

POESIA E FOTOGRAFIA

 

POEMAS NOS DIÁRIOS DE MIGUEL TORGA

 

 

RELATO

  

 

Senhor, deitou-se a meu lado 

E cheirava a maçã como no dia 

Em que o primeiro pecado 

Furava a terra e nascia.

 

  

Era preciso lutar, 

Cuspir-lhe o corpo, que vi 

E era como um pomar!... 

Senhor, eu então comi.

 

  

Coimbra, 27 de Fevereiro de 1939 (Diário I)

 

22
Fev14

Poesia e Fotografia 16

 

 

POESIA E FOTOGRAFIA

 

POEMAS NOS DIÁRIOS DE MIGUEL TORGA

 

 

SARRO

 

Deste dia passado,

Nada que em mim mereça duração:

O jardim tesourado,

O rio sujo, ao lado,

E este silêncio dela, amortalhado

No coração.

 

Apenas uma criança loira me sorriu

Quando eu lhe disse que dissesse - um, dois.

Apenas ela! Muito séria ouviu

E sorriu depois.

 

Mas, passada a magia dessa hora,

A criança chorou,

O doente do cancro piorou,

E lá fora

O inverno sem fim continuou.

 

 

Coimbra, 8 de Janeiro de 1939 (Diário I)

 

18
Fev14

Poesia e Fotografia 15

POESIA E FOTOGRAFIA

 

POEMAS NOS DIÁRIOS DE MIGUEL TORGA

 

 

INSTANTÂNEO

 

 

É um cemitério pobre. 

Fica à beira da estrada,

E qualquer tempo o cobre

Duma sombra de nada.

  

 

Vão a enterrar ali 

Pobre almas singela 

Que viveram aqui,

E só ali são elas.

 

  

São Martinho de Anta, 26 de Dezembro de 1938 (Diário)

 

16
Fev14

Encontro(s) - Cena 15:- Até já!

ATÉ JÁ!

 

Hoje estivemos num jantar muito especial.

 

 

Especial mas, simultaneamente, com dificuldade em classificá-lo: se despedida ou de homenagem.

 

Por nós, preferimos mais a palavra homenagem. Porque, com ele, queríamos assinalar o fim de um ciclo e o começo de outro.

 

E, talvez, até mais do que isso - o da passagem de um testemunho.

 

O Professor Doutor Américo Nunes Peres, distinto professor da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) e, durante muitos anos, Delegado do Magnífico Reitor, no Pólo de Chaves da UTAD, aposentou-se.

 

Os funcionários daquele Pólo não quiseram deixar «partir» Américo Nunes Peres, para uma nova fase da sua vida, sem antes lhe mostrarem a sua estima, amizade e gratidão por tantos anos de convivência e trabalho, em conjunto, a favor da causa do ensino superior público em Chaves.

 

Os seus colegas e colaboradores na docência - bem assim representantes institucionais da UTAD (Vila Real) - estiveram também presentes.

 

Nas suas palavras finais, Américo Peres, da forma que sempre nos já habituou e lhe é peculiar, sucinta e sentidamente, com humildade, pediu desculpas por alguma falha cometida e por não ter feito mais e melhor pela UTAD em Chaves.

 

Vimos que proferia as palavras com emoção, vindas mesmo do fundo da alma, evidenciando um profundo sentido de tristeza, como que se justificando do fracasso de um sonho.

 

 

Na circunstância - porventura quebrando o protocolo, e agindo de uma forma (eventualmente) politicamente incorreta - não resistimos, contrapondo ao seu discurso, que o sentimos no final como se duma despedida se tratasse.

 

E referimos que, no fim da nossa adolescência e começo da nossa primeira juventude, houve 3 personalidades que tiveram uma influência decisiva em termos do que, a partir daí seria o nosso caminho do futuro e a interiorização e vivência de princípios e valores que acabaram por nortear a nossa vida: Martin Luther King; John F. Kennedy e Che Guevara. O primeiro, quando apelava a termos um sonho (tal como ele o teve e pelo qual lutou e morreu); o outro, quando, no seu discurso de tomada de posse como Presidente dos Estados Unidos da América, dizia aos seus compatriotas que «não perguntem o que o seu país pode fazer por vocês - mas o que vocês podem fazer pelo seu país»; o terceiro, quando, pelo seu exemplo de vida, nos incita à rebeldia, à luta pelos nossos ideais, contra a injustiça social e a incorruptibilidade da conduta humana pois, mais importante que os povos e as nações é o Homem, o seu bem-estar e a sua dignidade.

 

De certa forma, Américo Nunes Peres, nosso amigo e companheiro de luta pelas causas da educação - que assumíamos não apenas como uma simples profissão mas como uma verdadeira vocação - preparando jovens (mulheres e homens) para os novos desafios da sociedade do futuro, também, connosco, teve um sonho: fazer crescer o Pólo da UTAD em Chaves, contribuindo, assim, com uma nova «massa crítica», não só para preparar os jovens, construtores da sociedade do futuro - uma sociedade cada vez mais heterogénea, diversa, complexa, multi, pluri e intercultural - mas também para que a instituição de formação e investigação da qual fazia parte, e da qual aqui em Chaves era responsável como Delegado da entidade máxima da UTAD, contribuísse e trabalhasse para o desenvolvimento de um território de fronteira, periférico, em desertificação crescente, deprimido.

 

E deu exemplo de luta e perseverança por esse ideal (ou desiderato) ao interiorizar que o desenvolvimento de um lugar, de uma terra ou território não se consubstancia - ou se espera apenas que venha dos que são e vêm de fora - mas, essencialmente, se faz e se constrói a partir de nós próprios.

 

Américo Nunes Peres lutou, às vezes com rebeldia - nunca desistindo -, para que os responsáveis da UTAD entendessem que o alargamento da UTAD, com um autêntico Pólo, criando uma academia, num dos lugares estratégicos do território transmontano, como Chaves, trazia uma mais-valia, uma outra notoriedade, e uma mais eficaz intervenção em termos de influência e atuação da UTAD na Região de Trás-os-Montes de Alto Douro nas suas múltiplas relações e interconexões, essencialmente com a Galiza, e não se confinando, quase exclusivamente, à cidade onde tem a sua sede.

 

Teve, pois, este sonho; interiorizou e fez sentir, a quem de direito, que não eram apenas os dinheiros ou as eventuais más vontades do poder central que iriam impedir um verdadeiro Pólo da UTAD em Chaves; porque sempre teve como lema que «ninguém desenvolve ninguém a não ser nós próprios».

 

Houve muitos ouvidos moucos e ventos que, de muitos lados, não sopraram de feição!

 

O sonho, para ele, (e tenho sérias dúvidas se algum dia foi para alguns!) não se tornou realidade.

 

Mas a fé e a esperança, como é costume dizer-se, são as únicas a morrer!

 

Por isso, Américo Nunes Peres, ao sair do Pólo de Chaves, para iniciar um novo ciclo da sua vida, não se despediu dele: apenas passou o testemunho de um sonho; a perseverança de uma luta e a convicção, eivada de um grande apelo - e que  todos os flavienses devem também interiorizar: que não é apenas contarmos só com os de fora - pois ninguém dá nada sem luta! - para  adquirirmos aquilo que consideramos ser mais justo e adequado para o desenvolvimento das pessoas que aqui vivem, lutam e trabalham em ordem a uma melhor qualidade de vida e ao desenvolvimento harmónico, sustentável e equilibrado da sua terra.

 

Por isso, o ato a que hoje assistimos, não foi uma despedida, simplesmente um até já.

 

Aqui deixamos, publicamente, um abraço amigo ao colega de tantos anos de trabalho e luta naquilo que sempre nos moveu: a qualidade da educação numa melhor formação dos nossos jovens em ordem a uma melhor cidadania para a sociedade do amanhã.

 

António de Souza e Silva

12
Fev14

Poesia e Fotografia 14

POESIA E FOTOGRAFIA

 

POEMAS NOS DIÁRIOS DE MIGUEL TORGA

 

NEGRURA

  

Neste dia sem luz que me anoitece

Que me sepulta inteiro, 

Até de mim a minha dor se esquece 

Para que eu seja um morto verdadeiro.

   

Chove tristeza fria no telhado 

Do castelo do Sonho; nua, nua 

A calçada que subo, já cansado 

De tanto andar perdido nesta rua.

   

Duma olaia caiu, morta, amarela, 

Qualquer coisa que foi princípio e fim; 

E bem olhada, bem pensada, é ela 

Aquela folha que lutou por mim...

 

Sozinho e morto ouço cantar alguém, 

Mas é longe de mais a melodia...

E o ouvido que vai nunca mais vem 

Trazer-me a luz que falta no meu dia.

 

Coimbra, 13 de Outubro de 1938 (Diário I)

 

 

09
Fev14

Poesia e Fotografia 13

 

POESIA E FOTOGRAFIA

 

POEMAS NOS DIÁRIOS DE MIGUEL TORGA

 

 

IDÍLIO

 

Lírica, a tarde cai

Com secura nas folhas;

Lírica, a minha vista vai

A olhar o que tu olhas...

 

Oliveiras de sonho

A ver nascer a lua...

Liricamente ponho

A minha mão na tua.

 

Coimbra, Tovim, 3 de Setembro de 1938 (Diário I)

 

09
Fev14

Poesia e Fotografia 12

POESIA E FOTOGRAFIA

 

POEMAS NOS DIÁRIOS DE MIGUEL TORGA

 

 

SECURA

 

 

 

Tarde de primavera. 

Como quem é do mundo, 

Bebo sol e quimera, 

E mergulho as raízes mais no fundo.

  

 

Vida! 

O tutano da terra - seiva! 

A semente aquecida 

No carinho da leiva!

 

  

O que um ser de dois pés sabe dizer!... 

Infelizmente, isto de germinar, 

Nem se faz a morrer, 

Nem se faz a pensar. 

 

Coimbra, 30 de Março de 1988 (Diário I)

 

07
Fev14

Desencontro(s) - Cena 8:- Do Novo Narciso ao encontro do «Outro-Eu» - seu semelhante

 

 

D0 NOVO NARCISO AO ENCONTRO DO «OUTRO-EU» - SEU SEMELHANTE

 

 

 

No primeiro post deste blog, que surgiu de uma noite de «revolta» e «insónia» - daí a nudez das suas palavras e a «azia» que as mesmas evidencia(va)m - dizia, entre outras coisas, que o mesmo surgia “da minha revolta (...) à procura de sentido para tudo isto” ou, no fundo, que é o mesmo que dizer, da vida, dos tempos e da sociedade em que estamos e vivemos.

 

Daí as rubricas com a designação «Encontro(s)» e «Desencontro(s)» que outra coisa não são que uma procura, um obter este intento: uma reflexão que comigo mesmo faço - e partilho com os leitores que me leem - feita de encontros e desencontros comigo mesmo e com o mundo que me (nos) rodeia.

 

Pegando na minha pena - e com as minhas palavras - ou pedindo-as «emprestadas» a diferentes autores/pensadores, todos estes escritos, e os seus diferentes contextos, para além as reflexões neles feitos, espelham «o que me vai na alma». O que efetivamente penso e sinto.

 

Contudo, tudo aquilo que escrevemos não vem para a página em branco em estado puro, virginal. Pelo meio, vêm atuando muitos filtros e muitas fontes que alimentam aquilo que somos e aquilo que dizemos!

 

Porque nós somos assim: fruto de muitos caminhos e encruzilhadas. Que ditaram aquilo que somos e, quiçá, definem, muitas vezes de modo radical, aquilo que seremos.

 

Porque há pessoas que nos marcam. Porque, como seres humanos, temos as nossas preferências. Porque, hoje, mais que nunca, todos queremos, mesmo, ser nós próprios.

 

Enfim, porque há modelos. Modelos a que nos ligamos e com quem, muitas vezes, partilhamos. Porque temos com eles afinidades. «São dos nossos».

 

Um autor/pensador, de entre uma plêiade deles com quem mais tenho afinidades intelectuais - e porque não dizê-lo, afetivas (como se a razão nada tivesse a ver com o afeto!) - é Gilles Lipovetsky, no seu modo de ler e interpretar a sociedade em que hoje nos é dado viver.

 

Por isso, hoje, e aqui, não resisto a longamente citar algumas das passagens do seu livro, prefaciado por Manuel Maria Carrilho, e dado à estampa pelas Edições 70, do Grupo Almedina, em 2013, - «A era do vazio - Ensaios sobre o individualismo contemporâneo».

 

Procurando dar-nos a conhecer a sociedade em que hoje em dia vivemos e o sujeito que dela emerge, no conjunto dos seus ensaios, num deles, a páginas 86 e seguintes diz-nos:

 

“Em simultâneo com a revolução informática, as sociedades pós-modernas conhecem uma «revolução interior», um imenso «movimento de consciência» (the awareness movement), um fascínio sem precedentes pelo autoconhecimento e pela autorealização, como prova a proliferação dos organismos psi, técnicas de expressão e comunicação, meditações e ginásticas orientais. A sensibilidade política dos anos 60 deu lugar a uma «sensibilidade terapêutica»; mesmo os mais duros (sobretudo esses) entre os antigos líderes contestatários sucumbem aos encantos da sel-examination: enquanto Rennie Davis abandona o combate radical para seguir o guru Maharaj Ji, Jerry Rubin conta que, entre 1971 e 1975, praticou com delícia a terapia gestaltista, a bioenergia, o rolfing, as massagens, o jogging, tai chi, Esalen, o hipnotismo, a dança moderna, a meditação, Silva Mind Contrai, Arica, a acupunctura e a terapia reichiana. No momento em que o crescimento económico se esgota, o desenvolvimento psíquico reveza-o; o consumo da consciência torna-se uma nova bulimia: ioga, psicanálise, expressão corporal, zen, terapia primal, dinâmica de grupo, meditação transcendental; à inflação económica responde a inflação psi e o formidável surto narcísico que esta engendra. Canalizando as paixões no sentido do Eu, promovido assim à categoria de umbigo do mundo, a terapia psi, ainda que colorida de corporeidade e de filosofia oriental, gera uma figura inédita de Narciso, identificando-se doravante este com o homo psychologicus. Narciso, obcecado por si próprio, não sonha, não está atingido de narcose, trabalha assiduamente na libertação do Eu (...) .

 

Por outro lado, tudo o que seria suscetível de funcionar como subproduto (o sexo, o sonho, o lapso, etc.,) será reciclado na ordem da subjetividade libidinal e do sentido. Alargando deste modo o espaço da pessoa, incluindo todas as escórias no campo do sujeito, o inconsciente abre caminho a um narcisismo sem limites. Narcisismo total que revela de outro modo os últimos avatares psi, em que a palavra de ordem já não é a interpretação, mas o silêncio do analista: libertado da palavra do Mestre e do referencial de verdade, o analisando é entregue apenas a si próprio numa circularidade regida exclusivamente pela auto-sedução do desejo. (...) Deste modo, a autoconsciência substitui a consciência de classe, a consciência narcísica a consciência política, substituição que não devemos em caso algum explicar reabrindo o eterno debate sobre as manobras de diversão da luta de classes. O essencial está noutro lado”.

 

Num dos últimos posts deste bolg, na rubrica «Desencontro(s): Cena 7 - E agora?...», citando Wolfgang Streech, dizia: “Ninguém pode – depois daquilo que aconteceu desde 2008 – compreender a política e as instituições políticas sem as pôr numa estreita relação com os mercados e os interesses económicos, assim como as estruturas de classe e os conflitos que  dela resultam. Se e em que medida esta posição é «marxista» ou «neomarxista» é uma questão que me parece completamente desinteressante e que não pretendo abordar, pois faz parte do resultado da evolução histórica já não ser possível dizer, atualmente, com segurança, onde, no esforço de esclarecimento dos acontecimentos em curso, acaba o neomarxismo e começa o marxismo. Aliás, as ciências sociais modernas, sobretudo quando se debruçam sobre as sociedades como tal e sobre a evolução das mesmas, não podem prescindir do recurso a elementos centrais das teorias «marxistas» – mesmo que seja para se definirem a si mesmas em contradição com estas. De qualquer modo, estou convencido de que, sem utilizar determinados conceitos cruciais que remontam a Marx, não é possível compreender minimamente a evolução pela qual as sociedades modernas estão a passar atualmente e que isto é tanto mais verdadeiro quanto mais óbvio se torna o papel impulsionador da economia de mercado capitalista em desenvolvimento na sociedade mundial emergente.” (http://zassu.blogs.sapo.pt/desencontros-cena-7-e-agora-7346).

 

Ou seja, o outro lado está num sistema que tudo reduz a pura e simples «mercadoria». Desde o Eu até à sua própria imagem, tudo se vende. Tudo tem um «valor». Tudo tem um determinado preço. Por isso mesmo se deve «investir»! Na realização do Ego puro!...

 

Contudo, contradição das contradições, “quanto mais o Eu é investido, feito objeto de atenção e de interpretação, mais a incerteza e a interrogação crescem. O Eu torna-se um espelho vazio.

 

(...) Narciso já não está imobilizado diante da sua imagem fixa, já nem sequer [agora] há imagem, nada além de uma busca interminável de Si, um processo de desestabilização ou flutuação psi na esteira da flutuação monetária ou da opinião pública: Narciso entrou em órbita”. Veja-se, a este propósito, o «espetáculo degradante» do programa televisivo «A Casa dos Segredos»!

 

(...) O neonarcisismo não se contentou com neutralizar o universo social, esvaziando as instituições dos seus investimentos emocionais [ditos «nobres»]; também o Eu, desta feita, se vê corroído, esvaziado da sua identidade, o que paradoxalmente sucede em virtude do seu hiper-investimento. Como o espaço público se esvazia emocionalmente por excesso de informações, de solicitações e de animações, o Eu tornou-se um «conjunto frouxo».

 

 (...) No sentido da mesma dissolução do Eu atua a nova ética permissiva e hedonista: o esforço deixou de estar na moda, o que significa coerção ou disciplina austera é desvalorizada em proveito do culto do desejo e da realização imediata”, facilitando, com isso, fenómenos como os da corrupção. E “tudo se passa como se se tratasse de levar ao extremo o diagnóstico de Nietzche sobre a tendência moderna de favorecer a «fraqueza da vontade», ou seja, a anarquia dos impulsos e das tendências e, correlativamente, a perda de um centro de gravidade que hierarquize o todo: «A pluralidade e a desagregação dos impulsos, a falta de sistematização entre eles, leva a uma ‘vontade fraca’.

 

(...) O fim da vontade coincide com a era da indiferença pura, com o desaparecimento dos grandes fins e grandes iniciativas que merecem o sacrifício da vida: «tudo imediatamente» e já não per aspera astra [de obstáculo em obstáculo até às estrelas]. «Expludam!», lemos por vezes num graffito.

 

(...) Obcecado apenas por si mesmo, procurando a sua realização pessoal e o seu equilíbrio, Narciso constitui um obstáculo ante os discursos de mobilização de massas; hoje, os apelos à aventura, ao risco político, não encontram eco; se a revolução se desprestigiou, não temos de recriminar qualquer «traição» burocrática: a revolução extinguiu-se sob os spots sedutores da personalização do mundo”. É o império do Eu camuflado numa economia promotora de «astros», em todas as dimensões e setores, para a maximização do lucro de uns poucos pela exploração de muitos (milhões) de outros!

 

“ (...) A erosão dos pontos de referência do Eu é a réplica exata da dissolução que hoje conhecem as identidades e os papéis sociais, outrora estritamente definidos, integrados como estavam em oposições reguladas: assim, os estatutos da mulher, do homem, da criança, do louco, do civilizado, etc., entraram num período de indefinição, de incerteza, enquanto não pára de se desenvolver a interrogação sobre a natureza das «categorias» sociais (...) Se o movimento democrático dissolve os pontos de referência tradicionais do outro, o esvazia de toda a dissemelhança substancial afirmando uma identidade entre indivíduos, sejam quais forem, sob outros aspetos, as suas diferenças aparentes, o processo de personalização narcísico, pelo seu lado, faz vacilar os pontos de referência do Eu, esvazia-o de todo o conteúdo definitivo”.

 

Contudo, o Eu, assim, transforma-se num Outro que “esboça o processo narcísico, o nascimento de uma nova alteridade, o fim da familiaridade do Si para consigo, quando quem está diante de mim deixa de ser um absolutamente Outro: a identidade do Eu vacila quando a identidade entre indivíduos se afirma, quando todo e qualquer ser se torna um «semelhante». Deslocamento e reprodução da divisão, ao interiorizar-se o conflito assume sempre uma função de integração social, desta vez menos através da conquista da dignidade pela luta de classe do que da busca da autenticidade e da verdade do desejo”.

 

É, manifestamente, neste campo que opera (deve operar) a nova revolução social: busca da autenticidade - e não encenações - e da verdade do desejo (de bem estar) em todas as vertentes e dimensões - individuais, sociais, políticas e económicas - sem qualquer disfarce ou mitigação, que uma economia vazia, sem princípios e valores, a não ser os do dinheiro, nos constantemente impingem!

 

Neste sentido é preciso que as ciências sociais, e o seu corpo teórica, a partir da pesquisa e da investigação, concite o aparecimento de um novo paradigma comprometido com o objeto do seu estudo - que não é um simples objeto/um Outro - mas um Eu/seu «semelhante», inaugurando uma nova ética no modo de fazer (e aplicar) a ciência! De forma crítica e empenhada. Porque, o «pressuposto» da «neutralidade», tem, traz consigo um significado...

 

E o teatro, bem como todas as formas de arte, e a animação sociocultural, com um vasto campo multi, inter e transdisciplinar, e como metodologia de ação, nestes tempos que correm, tem de dar um salto e «mostrar» que tem um papel fundamental na construção do novo Eu/Sujeito, portador de uma nova cidadania, transformadora da vida de cada um e construtora de uma mova comunidade/polis. Pela assunção do conflito como natural ao viver em comum. Pela luta e combate pelas «novas igualdades».

 

E que a classe política deve «comungar» dessa nova visão paradigmática, reabilitando-se, sendo capaz de «apregoar uma outra Boa Nova» capaz de mobilizar «outros novos cristãos» na construção de um «Novo Mundo».

 

06
Fev14

Poesia e Fotografia 11

POESIA E FOTOGRAFIA

 

POEMAS NOS DIÁRIOS DE MIGUEL TORGA

 

 

PEREGRINAÇÃO

 

Vim ver o cais da bruma.

Vim olhar as amarras do veleiro

Que anda a sonhar a espuma

Pela noite sem fim do nevoeiro.

 

Vim ver em que lugar da natureza

As fadas desdobavam seus novelos.

Vim fechar o meu sol nesta tristeza

Que enloirece os cabelos.

 

Vim conhecer o mágico vestido

Que veste de quimera esta metade

Dum mundo que o Senhor deixou despido

Por maldade.

 

Antuérpia, 16 de Janeiro de 1938 (Diário I)

 

04
Fev14

Poesia e Arte 01

POESIA E PINTURA

 

POEMAS NOS DIÁRIOS DE MIGUEL TORGA

 

 

 

Aqui estou. 

Duque de Alba de agora, 

Vim olhar o que sou 

Como quem se namora.

  

(Bruxelas, 15 de Janeiro de 1938, Diário I)

 

(Narciso, de Hans-Feibusch)

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